O ESTADO DE S. PAULO, Gaudêncio Torquato, 24 de janeiro de 2011
De tragédia em tragédia, o Brasil vai apagando das páginas de sua História o mito de paraíso terrestre que aqui se cultiva desde os tempos em que Pero Vaz de Caminha, embevecido com a exuberância das matas, as águas cristalinas dos rios, a beleza das praias, enfim, o jardim paradisíaco habitado por homens pacatos e mulheres nuas fruindo a liberdade do prazer e do ócio, descreveu a el-rei a condição ímpar de uma terra em que "se plantando, tudo dá". É bem verdade que essa terra, "grande e selvagem estufa, luxuriante e desordenada que para si própria fez a natureza", nos termos descritos por Charles Darwin, ganhou de contraponto à imagem de Éden a carranca de um inferno verde. Foi Lévi-Strauss que a pintou como o "ambiente mais hostil ao homem sobre a superfície da Terra". Descrevia o antropólogo o reino horripilante de insetos e artrópodes, picadas de mosquitos, mutucas e miruins, piuns e carrapatos, as aranhas, lacraias e escorpiões, o espectro das moléstias e do calor, que viu e sob o qual padeceu nos grotões de Mato Grosso. Dos idos de 1935-38 para cá, as entranhas nacionais foram sendo ocupadas de modo acelerado, ganhando as tintas da modernidade (e da devastação). E assim o território passou a conviver com as dobras que entrelaçam a majestosa estética de uma maravilha do planeta com cenas aterradoras, fruto da união entre a força da natureza e a incúria humana.
A tragédia que devastou um dos mais bonitos cartões-postais do País - e que pode passar de mil mortos - é a inequívoca demonstração de que, por aqui, o conceito de paraíso se está esboroando. As catástrofes, de tão previsíveis, começam a fazer parte do calendário entre o Natal e a folia carnavalesca. Em 2008, as águas devastaram Santa Catarina, afetando mais de 1,5 milhão de pessoas e 25 comunidades. Em 2002, na mesma Região Serrana do Rio morreram 42 pessoas. No final de 2009 houve o deslizamento de terra na Ilha Grande, em Angra dos Reis, que chegou a matar 30 pessoas. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, refere-se, agora, "à crônica das mortes anunciadas", querendo dizer que os eventos trágicos estavam previstos. Ora, por que Cabral, em vez de usar um surrado refrão, não tomou providências concretas - nas áreas de prevenção e controles - para atenuar os efeitos dos desastres "anunciados"? Desleixo, acomodação, cultura de empurrar com a barriga as questões de fundo? Há 5 milhões de pessoas que vivem em áreas de risco no Brasil. Há planos para administrar os acidentes que podem acontecer nesses espaços? E por que não existem?
A falta de respostas positivas decorre, primeiro, da ausência de clareza sobre a autoridade maior com responsabilidade para cuidar de tragédias. Descobre-se, nas entrelinhas da cobertura midiática, que há uma Secretaria Nacional de Defesa Civil, afeta ao Ministério da Integração Nacional. Trata-se, por suposição, do órgão superior para administrar situações trágicas. Ora, esse Ministério, apesar do rótulo Integração Nacional, foca sua atividade na Região Nordeste, onde estão sediadas as estruturas encarregadas de cuidar de calamidades decorrentes de intempéries. Mas a lógica exige que se produza o mapeamento de ameaças de catástrofes em todas as regiões. É uma ação que demanda um bom aporte de investimentos nos setores de prevenção. Os dados apontam, porém, que navegamos na contramão: entre 2000 e 2010 foram gastos R$ 542 milhões em programas preventivos e R$ 6,3 bilhões nas operações de reconstrução e apoio às comunidades vitimadas. Há falhas também na esfera da articulação. União, Estados e municípios deveriam adotar uma expressão uníssona em matéria de Defesa Civil, até porque essa frente, pelo menos teoricamente, faz parte das estruturas na maioria das municipalidades. Se não há articulação entre os entes federativos, inexistem planos integrados de ação preventiva. Dessa forma, ninguém faz avançar as ideias. O descontrole grassa por toda parte.
Há uma legislação para proteção de encostas, reflorestamento, demarcação de áreas de risco, controle de estabilidade do solo e das construções em assentamentos populares? Há, sim. Mas não é usada de modo adequado. Um jeitinho aqui, uma curva acolá, um trejeito mais adiante conseguem burlar a legislação. Ao final, a incúria abraça-se à acomodação. Portanto, o surto legislativo que poderá advir, a partir da tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro, será ineficaz. Não precisamos de mais leis, e sim fazer que os códigos existentes sejam rigorosamente aplicados. Lembrando o velho Montesquieu: "Quando vou a um país não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há, pois há boas leis por toda parte". E se a lei não é aplicada, de quem será a culpa? Do governante. Nesse caso, cabe avocar sua responsabilização. Não fez cumprir a regra? Punição. Urge que o Ministério Público, por sua vez, ponha a mão na cumbuca, identificando os atores responsáveis pelo desleixo nas instâncias municipal, estadual e federal. No dia em que um governante for flagrado e punido por não cumprir a lei que coíbe construções precárias e irregulares em solo urbano, o Brasil estará dando um passo à frente no terreno da ordem pública.
É evidente que, à margem de providências imediatas e concernentes ao plano de defesa ambiental, os entes públicos carecem privilegiar a infraestrutura de serviços públicos fundamentais, a partir de políticas de habitação, saneamento, sistematização da coleta de lixo, etc. Não há espaço físico que resista incólume à expansão urbana, sem sistemas para absorver as crescentes demandas. Para fechar o circuito do equilíbrio entre a força da natureza e a vida social, cabe prover os espaços com ferramentas tecnológicas capazes de detectar a ocorrência de fenômenos nas áreas de risco. Países que as possuem sofrem danos menores.
Com esta receita o Brasil, quem sabe, poderá resgatar sua imagem de paraíso tropical.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação
De tragédia em tragédia, o Brasil vai apagando das páginas de sua História o mito de paraíso terrestre que aqui se cultiva desde os tempos em que Pero Vaz de Caminha, embevecido com a exuberância das matas, as águas cristalinas dos rios, a beleza das praias, enfim, o jardim paradisíaco habitado por homens pacatos e mulheres nuas fruindo a liberdade do prazer e do ócio, descreveu a el-rei a condição ímpar de uma terra em que "se plantando, tudo dá". É bem verdade que essa terra, "grande e selvagem estufa, luxuriante e desordenada que para si própria fez a natureza", nos termos descritos por Charles Darwin, ganhou de contraponto à imagem de Éden a carranca de um inferno verde. Foi Lévi-Strauss que a pintou como o "ambiente mais hostil ao homem sobre a superfície da Terra". Descrevia o antropólogo o reino horripilante de insetos e artrópodes, picadas de mosquitos, mutucas e miruins, piuns e carrapatos, as aranhas, lacraias e escorpiões, o espectro das moléstias e do calor, que viu e sob o qual padeceu nos grotões de Mato Grosso. Dos idos de 1935-38 para cá, as entranhas nacionais foram sendo ocupadas de modo acelerado, ganhando as tintas da modernidade (e da devastação). E assim o território passou a conviver com as dobras que entrelaçam a majestosa estética de uma maravilha do planeta com cenas aterradoras, fruto da união entre a força da natureza e a incúria humana.
A tragédia que devastou um dos mais bonitos cartões-postais do País - e que pode passar de mil mortos - é a inequívoca demonstração de que, por aqui, o conceito de paraíso se está esboroando. As catástrofes, de tão previsíveis, começam a fazer parte do calendário entre o Natal e a folia carnavalesca. Em 2008, as águas devastaram Santa Catarina, afetando mais de 1,5 milhão de pessoas e 25 comunidades. Em 2002, na mesma Região Serrana do Rio morreram 42 pessoas. No final de 2009 houve o deslizamento de terra na Ilha Grande, em Angra dos Reis, que chegou a matar 30 pessoas. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, refere-se, agora, "à crônica das mortes anunciadas", querendo dizer que os eventos trágicos estavam previstos. Ora, por que Cabral, em vez de usar um surrado refrão, não tomou providências concretas - nas áreas de prevenção e controles - para atenuar os efeitos dos desastres "anunciados"? Desleixo, acomodação, cultura de empurrar com a barriga as questões de fundo? Há 5 milhões de pessoas que vivem em áreas de risco no Brasil. Há planos para administrar os acidentes que podem acontecer nesses espaços? E por que não existem?
A falta de respostas positivas decorre, primeiro, da ausência de clareza sobre a autoridade maior com responsabilidade para cuidar de tragédias. Descobre-se, nas entrelinhas da cobertura midiática, que há uma Secretaria Nacional de Defesa Civil, afeta ao Ministério da Integração Nacional. Trata-se, por suposição, do órgão superior para administrar situações trágicas. Ora, esse Ministério, apesar do rótulo Integração Nacional, foca sua atividade na Região Nordeste, onde estão sediadas as estruturas encarregadas de cuidar de calamidades decorrentes de intempéries. Mas a lógica exige que se produza o mapeamento de ameaças de catástrofes em todas as regiões. É uma ação que demanda um bom aporte de investimentos nos setores de prevenção. Os dados apontam, porém, que navegamos na contramão: entre 2000 e 2010 foram gastos R$ 542 milhões em programas preventivos e R$ 6,3 bilhões nas operações de reconstrução e apoio às comunidades vitimadas. Há falhas também na esfera da articulação. União, Estados e municípios deveriam adotar uma expressão uníssona em matéria de Defesa Civil, até porque essa frente, pelo menos teoricamente, faz parte das estruturas na maioria das municipalidades. Se não há articulação entre os entes federativos, inexistem planos integrados de ação preventiva. Dessa forma, ninguém faz avançar as ideias. O descontrole grassa por toda parte.
Há uma legislação para proteção de encostas, reflorestamento, demarcação de áreas de risco, controle de estabilidade do solo e das construções em assentamentos populares? Há, sim. Mas não é usada de modo adequado. Um jeitinho aqui, uma curva acolá, um trejeito mais adiante conseguem burlar a legislação. Ao final, a incúria abraça-se à acomodação. Portanto, o surto legislativo que poderá advir, a partir da tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro, será ineficaz. Não precisamos de mais leis, e sim fazer que os códigos existentes sejam rigorosamente aplicados. Lembrando o velho Montesquieu: "Quando vou a um país não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há, pois há boas leis por toda parte". E se a lei não é aplicada, de quem será a culpa? Do governante. Nesse caso, cabe avocar sua responsabilização. Não fez cumprir a regra? Punição. Urge que o Ministério Público, por sua vez, ponha a mão na cumbuca, identificando os atores responsáveis pelo desleixo nas instâncias municipal, estadual e federal. No dia em que um governante for flagrado e punido por não cumprir a lei que coíbe construções precárias e irregulares em solo urbano, o Brasil estará dando um passo à frente no terreno da ordem pública.
É evidente que, à margem de providências imediatas e concernentes ao plano de defesa ambiental, os entes públicos carecem privilegiar a infraestrutura de serviços públicos fundamentais, a partir de políticas de habitação, saneamento, sistematização da coleta de lixo, etc. Não há espaço físico que resista incólume à expansão urbana, sem sistemas para absorver as crescentes demandas. Para fechar o circuito do equilíbrio entre a força da natureza e a vida social, cabe prover os espaços com ferramentas tecnológicas capazes de detectar a ocorrência de fenômenos nas áreas de risco. Países que as possuem sofrem danos menores.
Com esta receita o Brasil, quem sabe, poderá resgatar sua imagem de paraíso tropical.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Nenhum comentário:
Postar um comentário