sábado, 18 de setembro de 2010

Propina era paga dentro da Casa Civil

Vinícius Castro, sócio de Israel Guerra, recebeu R$ 200 mil reais dentro da sala onde despachava, a poucos metros do gabinete da ministra da Casa Civil

VEJA, 18 de setembro de 2010


A reportagem de capa de VEJA desta semana traz mais indícios da extensão do balcão de negócios que funcionava dentro da Casa Civil. A revista relata o episódio em que o jovem advogado Vinicius de Oliveira Castro, sócio do filho da ex-ministra Erenice, se surpreendeu ao encontrar 200 000 reais na gaveta de sua mesa de trabalho. “Caraca! Que dinheiro é esse? Isso aqui é meu mesmo?”, disse.

De acordo com o texto, o dinheiro era parte de um pagamento da turma responsável pela usina de corrupção que funcionava dentro do Palácio do Planalto. Um colega mais experiente explicou: “É o ‘PP’ do Tamiflu, é a sua conta. Chegou para todo mundo”. ‘PP’ significa propina no linguajar da repartição. Tamiflu é o medicamento utilizado para tratar da gripe suína. Dias antes, em 23 de junho, o governo fechara um contrato de 34,7 milhões de reais para compra emergencial da droga. O Ministério da Saúde nega qualquer ingerência da Casa Civil na aquisição de Tamiflu, que já gastou 400 milhões de reais aos cofres públicos.

A história foi revelada a VEJA por um amigo de Vinícius que trabalhava no governo e seu tio, Marco Antonio Oliveira, então diretor de Operações dos Correios. A revista informa que ambos os depoimentos foram gravados. Vinícius relatou ao tio, sem dizer nomes, que outros três funcionários da Casa Civil receberam os pacotes de 200 000 reais. “Foi um dinheiro para o Palácio. Lá tem muito negócio, é uma coisa”, afirmou. Para receber o valor, o ex-assessor da Casa Civil (pediu exoneração na segunda-feira) explicou ao tio que não precisou fazer nada para receber a propina. O pagamento Era o ‘cala-boca’. “Eu avisei que, se continuasse desse jeito, ia sair algemado do Palácio”, lembrou o ex-diretor dos Correios.

Além de ex-funcionário do Planalto, Vinícius foi sócio de Israel Guerra, filho de Erenice Guerra, ex-ministra da Casa Civil (teria sido demitida na quinta-feira), numa empresa que intermediava contratos com o governo. A influência de Erenice no alto escalão do governo garantia bons negócios. E, pelos indícios, alcançava o repugnante fato de receber os favores da corrupção dentro do Palácio de Planalto, numa sala ao lado do gabinete da ministra-chefe da Casa Civil.

'Caraca! Que dinheiro é esse?'


VEJA,Diego Escosteguy e Otávio Cabral 18 de setembro de 2010

Funcionário da Casa Civil recebeu propina dentro da Presidência da República, perto do gabinete da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e a um andar do presidente Lula


Numa manhã de julho do ano passado, o jovem advogado Vinícius de Oliveira Castro chegou à Presidência da República para mais um dia de trabalho. Entrou em sua sala, onde despachava a poucos metros do gabinete da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e de sua principal assessora, Erenice Guerra Vinícius se sentou, acomodou sua pasta preta em cima da mesa e abriu a gaveta.

O advogado tomou um susto: havia ali um envelope pardo. Dentro, 200 mil reais em dinheiro vivo – um “presentinho” da turma responsável pela usina de corrupção que operava no coração do governo Lula.

Vinícius, que flanava na Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, começara a dar expediente na Casa Civil semanas antes, apadrinhado por Erenice Guerra e o filho-lobista dela, Israel Guerra, de quem logo virou compadre.

Apavorado com o pacotaço de propina, o assessor neófito, coitado, resolveu interpelar um colega: “Caraca! Que dinheiro é esse? Isso aqui é meu mesmo?”. O colega tratou de tranquilizá-lo: “É a ‘PP’ do Tamiflu, é a sua cota. Chegou para todo mundo”.

PP, no caso, era um recado – falado em português, mas dito em cifrão. Trata-se da sigla para os pagamentos oficiais do governo. Consta de qualquer despacho público envolvendo contratos ou ordens bancárias. Adaptada ao linguajar da cleptocracia, significa propina. Tamiflu, por sua vez, é o nome do remédio usado para tratar pacientes com a gripe H1N1, conhecida popularmente como gripe suína.

Dias antes, em 23 de junho, o governo, diante da ameaça de uma pandemia, acabara de fechar uma compra emergencial desse medicamento – um contrato de 34,7 milhões de reais. A “PP” entregue ao assessor referia-se à comissão obtida pela turma da Casa Civil ao azeitar o negócio Segundo o assessor, o governo comprara mais Tamiflu do que o necessário, de modo a obter uma generosa comissão pelo negócio.

Até a semana passada, Vinícius era assessor da Casa Civil e sócio de Israel Guerra, filho de Erenice Guerra, ex-ministra da pasta, numa empresa que intermediava contratos com o governo usando a influência da petista. Naturalmente, cobravam comissão pelos serviços.

Depois que VEJA revelou a existência do esquema em sua última edição, Vinícius e outro funcionário do Planalto, Stevan Knezevic, pediram demissão, a ministra Erenice caiu – e o governo adernou na mais grave crise política desde o escândalo do mensalão, e que ronda perigosamente a campanha presidencial da petista Dilma Rousseff.

Lançado ao centro do turbilhão de denúncias que varre a Casa Civil, Vinícius Castro confidenciou o episódio da propina a pelo menos duas pessoas: seu tio e à época diretor de Operações dos Correios, Marco Antonio de Oliveira, e a um amigo que trabalhava no governo. Ambos, em depoimentos gravados, confirmaram a VEJA o teor da confissão.

Antes de cair em desgraça, o assessor palaciano procurou o tio e admitiu estar intrigado com a incrível despreocupação demonstrada pela família Guerra no trato do balcão de negócios instalado na Casa Civil. Disse o assessor: “Foi um dinheiro para o Palácio. Lá tem muito negócio, é uma coisa. Me ofereceram 200 000 por causa do Tamiflu”.

Vinícius explicou ao tio que não precisou fazer nada para receber a PP. “Era o ‘cala-boca". O assessor disse ainda ao tio que outros três funcionários da Casa Civil receberam os tais pacotes com 200 000 reais; porém não declinou os nomes nem a identidade de quem distribuiu a propina. Diz o ex-diretor dos Correios: “Ele ficou espantado com aquela coisa. Eu avisei que, se continuasse desse jeito, ele iria sair algemado do Palácio”.

O cândido ex-assessor tem razão: dinheiro sujo dentro de um gabinete da Presidência da República é um fato espantoso. Nos últimos anos, sobretudo desde que o presidente Lula relativizou os crimes cometidos durante o mensalão, sempre que se apresenta um caso de corrupção à opinião pública surgem três certezas no imaginário popular.

* Primeiro, nunca se viu um escândalo tão escabroso

* Ninguém será punido

* O escândalo que vier a sucedê-lo reforçará as duas certezas anteriores.


A anestesiada sociedade brasileira já soube de dinheiro na cueca, dinheiro na meia, dinheiro na bolsa, dinheiro em caixa de uísque, dinheiro prometido por padre ligado a guerrilheiros colombianos. Mas nada se compara em ousadia ao que se passava na Casa Civil. Ficará consolidado no inverno moral da era Lula se, mais uma vez, esses eventos forem varridos para debaixo do tapete.

Já se soube de malfeitorias produzidas na Presidência, mas talvez nunca de um modo tão organizado e sistemático como agora – e, ao mesmo tempo, tão bisonhamente rudimentar, com contratos, taxas de sucesso e depósitos de propina em conta bancária.

Por fim, o que pode ser mais escabroso do que um grupo de funcionários públicos, ao que tudo indica com a participação de um ministro da Casa Civil, cobrar pedágio em negócios do governo? O mais assustador, convenha-se, é repartir o butim ali mesmo, nas nobres dependências da cúpula do Poder Executivo, perto do presidente da República e ao lado da então ministra e hoje candidata petista Dilma Rousseff.

Na semana passada, quando o caso veio a público, a candidata do PT ao Planalto, Dilma Rousseff, tentou se afastar o quanto pôde do escândalo. Apesar de o esquema ter começado quando Dilma era ministra e Erenice sua escudeira, a candidata disse que não poderia ser responsabilizada por “algo que o filho de uma ex-assessora fez”. Dilma candidata não tinha mesmo outra alternativa. As eleições estão aí e o assunto em questão é por demais explosivo.

Erenice Guerra ganhou vida em razão do oxigênio que Dilma lhe forneceu durante sete anos de governo. Erenice trabalhou com a candidata quando esta comandava a pasta de Minas e Energia e na Casa Civil transformou-se na assessora-mor da petista, assumindo o cargo de secretária-executiva. É possível que em todos esses anos de intenso trabalho conjunto Dilma não tenha percebido o que se passava ao seu redor. É possível que Dilma seja uma péssima leitora de caráter. Mas, em algum momento, ela vai ter que enfrentar publicamente esse enorme contencioso passado.

Obedecendo à consagrada estratégia política estabelecida pelo PT, Dilma não só tentou se distanciar do caso como buscou desqualificar os fatos apresentados por VEJA. “É um factoide”, afirmou a candidata, dois dias antes de Erenice ser demitida pelo presidente Lula. (O governo divulgou que a ministra pediu demissão, o que é parolagem.)

A chefe da numerosa família Guerra caiu na manhã da última quinta-feira, vítima dos vícios da sua turma. Além dos fatos apontados por VEJA, veio a público o atávico hábito da ex-ministra em empregar parentes no governo, que, desde já, dá um novo significado ao programa Bolsa Família. Também se descobriram contratos feitos sem licitação favorecendo parentes da ministra.

Em um dos episódios, o filhote de Erenice cobrou propina até de um corredor de Motocross, que descolara um patrocínio de 200 000 reais com a Eletrobrás, estatal sob a influência de Erenice. Taxa de sucesso paga: 40 000 reais. “Israel chamava a Dilma de tia”, contou o motoqueiro Luís Corsini, o desportista que pagou a taxa de sucesso.

Antes de capitular aos irretorquíveis fatos apresentados por VEJA, o governo fez de tudo para desqualificar o empresário Fábio Baracat, uma das fontes dos jornalistas na revelação do esquema de arrecadação de propina na Casa Civil. Baracat, um empresário do setor aéreo, narrara, em conversas gravadas, as minúcias de suas tratativas com a família Guerra, que tinham por objetivo facilitar a obtenção de contratos da empresa MTA nos Correios.

No sábado, depois de, como disse, sofrer “fortes pressões”, Baracat divulgou uma nota confusa, na qual “rechaçava oficialmente informações" da reportagem, mas, em seguida, confirmava os fatos relatados. Com medo de retaliações por parte do governo, o empresário refugiou-se no interior de São Paulo. Ele aceitou voltar à capital paulista na última quinta-feira, para mais uma entrevista. Disse ele na semana passada: “Temo pela minha vida. Vou passar um tempo fora do país”. O empresário aceitou ser fotografado e corroborou, diante de um gravador, as informações antes prestadas à revista.

Baracat não quis explicar de onde partiram as pressões que sofreu, mas, em uma hora e meia de entrevista gravada, ratificou integralmente o conteúdo da reportagem. O empresário confirmou que, levado por Israel e Vinícius, encontrou-se várias vezes com Erenice Guerra, quando ela era secretária-executiva e, por fim, quando a petista virou ministra.

As primeiras conversas, narra Baracat, serviram para consolidar a convicção de que Israel não vendia falsamente a influência da mãe. Na última conversa que eles tiveram, em abril deste ano, o tom mudou. Israel cobrava dinheiro do empresário por um problema resolvido para ele na Infraero.

Diz Baracat: “Ele dizia que havia pagado na Infraero para resolver”. Na reunião, disse Erenice, de acordo com o relato do empresário: “’Olha, você sabe que a gente está aqui na política, e a gente tem que cumprir compromissos’. (...) Ficou subentendido (que se tratava da propina). (Ela) foi sempre genérica (nesse sentido). (...) Ela disse: ‘A gente é político, não pode deixar de ter alguns parceiros’”. Baracat diz que não sabe o que a família Guerra fez com o dinheiro.

O misterioso caso da comissão do Tamiflu também merece atenção das investigações iniciadas pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República. O Ministério da Saúde, que já gastou 400 milhões de reais com a aquisição do remédio desde o ano passado, afirma que não houve qualquer ingerência da Casa Civil – e que a quantidade de Tamiflu comprada foi definida somente por critérios técnicos.

A seguir, mais uma história edificante

Em outros episódios, a participação da Casa Civil aparece de forma mais clara. VEJA apurou mais um caso no qual o poder da Casa Civil dentro do governo misturou-se aos interesses comerciais da ex-ministra, resultando numa negociata de 100 milhões de reais. Desta vez, o lobista central da traficância não é o filho, mas o atual marido de Erenice Guerra, o engenheiro elétrico José Roberto Camargo Campos.

Com a ministra Dilma Rousseff na Casa Civil e a esposa Erenice Guerra como seu braço direito, Camargo convenceu dois amigos donos de uma minúscula empresa de comunicações a disputar o milionário mercado da telefonia móvel. Negócio arriscado, que exige muito capital e experiência num ramo cobiçado e disputado por multinacionais. Isso não era problema para Camargo e seus sócios. Eles não tinham dinheiro nem experiência, mas sim o que efetivamente importa em negócios com o governo: os contatos certos – e poderosos.

Em 2005, a empresa Unicel, tendo Camargo como diretor comercial, conseguiu uma concessão da Anatel para operar telefonia celular em São Paulo. Por decisão pessoal do então presidente da agência, Elifas Gurgel, a empresa do marido ganhou o direto de entrar no mercado. De tão exótica, a decisão foi contestada pelos setores técnicos da Anatel, que alegaram que a empresa sequer havia apresentado garantias sobre sua capacidade técnica e financeira para tocar o negócio.

O recurso levou dois anos para ser julgado pela Anatel. Nesse período, Erenice e seu marido conversaram pessoalmente com o presidente da agência, conselheiros e técnicos, defendendo a legalidade da operação. “A Erenice fazia pressão para que os técnicos revissem seus parecereres e os conselheiros mudassem seu voto”, conta um dos membros do conselho, também alvo da pressão da ex-ministra.

A pressão deu certo. O técnico que questionou a legalidade da concessão, Jarbas Valente, voltou atrás e mudou seu parecer, admitindo os “argumentos” da Casa Civil. Logo depois, Valente foi promovido a conselheiro da Anatel. Um segundo conselheiro, Pedro Jaime Ziller, também referendou a concessão a Unicel. Não se entende bem a relação entre uma coisa e a outra, mas dois assessores de Ziller, logo depois, trocaram a Anatel por cargos bem remunerados na Unicel.

Talvez tenham sido seduzidos pelos altos salários pagos pela empresa, algo em torno de 30 000 reais – muito, mas muito mais do que se paga no serviço público. O presidente Elifas foi pressionado diretamente pelo Ministro das Comunicações, mas nem precisava: ele foi colega de Exéricito de um dos sócios da Unicel. Tudo certo? Não. Havia ainda um problema a ser sanado.

A legislação obriga as concessionárias a pagar 10% do valor do contrato como entrada para sacramentar o negócio. A concessão foi fixada em 93 milhões de reais. A empresa, portanto, deveria pagar 9,3 milhões de reais. A Unicel não tinha dinheiro.

Novamente com Erenice à frente, a Unicel conseguiu uma façanha. O conselho da Anatel acatou o pedido para que o sinal fosse reduzido para 1% do valor do negócio, ou seja, pouco mais de 900 000 reais. A insólita decisão foi contestada pelo Ministério Público e, há duas semanas, considerada ilegal pela Justiça.

Com a ajuda estatal, a empresa anunciou o início da operação em outubro de 2008, com o nome fantasia de AEIOU, prometendo tarifas mais baixas para atrair o público jovem, com o compromisso de chegar a um milhão de clientes em dois anos. Como foi previsto pelos técnicos, nada disso aconteceu.

Hoje, a empresa tem 20 000 assinantes, sua única loja foi fechada por falta de pagamento de aluguel e responde a mais de 30 processos por dívidas, que ultrapassam 20 milhões de reais. Mau negócio? Apesar da aparência, não. A grande tacada ainda está por vir.

O alvo do marido de Erenice é o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) – uma invenção que vai consumir 14 bilhões de reais para universalizar o acesso a internet no Brasil. O grupo trabalha para “convencer” o governo a considerar que a concessão da Unicel é de utilidade pública para o projeto. Com isso, espera receber uma indenização. Valor calculado por técnicos do setor: se tudo der certo, a empresa sairá com 100 milhões de reais no bolso, limpinhos.

Dinheiro dos brasileiros honestos que trabalham e pagam impostos.

A participação da Casa Civil no episódio ultrapassa a intolerável fronteira das facilidades e da pressão política. Aqui, aparecem diretamente as promíscuas relações entre os negócios da família Guerra e os funcionários que, dentro da Presidência da República, deveriam zelar pelo bem público.

A Unicel contou, em especial, com os favores de Gabriel Boavista Lainder, assessor da Presidência da República e dirigente do Comitê Gestor dos Programas de Inclusão Digital, que comanda o PNBL. Antes de ocupar o cargo, Gabriel trabalhou por oito anos com os donos da Unicel. Mas isso é, como de costume, apenas uma coincidência – como também é coincidência o fato de ele ter sido indicado ao cargo pelo marido de Erenice.

“O marido da Erenice é um cara que admirava meu trabalho. Ela me disse que precisava de alguém para coordenar o PNBL”, diz Laender. E completa: “O PNBL não contempla o uso da faixa da Unicel, mas ela pode operar a banda larga do governo se fizer adaptações técnicas” É um escárnio.

Camargo indicou o homem que pode resolver os problemas de sua empresa. Procurado, o marido de Erenice não quis se pronunciar. Na Junta Comercial, o nome de Camargo aparece como sócio de uma empresa de mineração, que funciona em modesto escritório em Brasília. Um probleminha que pode chamar a atenção dos investigadores: a Unicel está registrada no mesmo endereço, que também era usado para receber empresários interessados em negócios com o governo. Certamente mais uma coincidência.

Com reportagem de Rodrigo Rangel, Daniel Pereira, Gustavo Ribeiro e Fernando Mello

Quem é Erenice Guerra

A ficha da ex-ministra da Casa Civil, sucessora de Dilma Rousseff, revela um histórico de casos polêmicos

Braço direito de Dilma Rousseff, Erenice Guerra, 51 anos, tornou-se ministra-chefe da Casa Civil em abril deste ano, quando Dilma saiu do posto para disputar a Presidência. Antes, tentou, sem sucesso, ocupar uma cadeira no Tribunal de Contas da União (TCU) e no Superior Tribunal Militar (STM). Formada em direito, filiou-se ao PT em 1981. Veja abaixo escândalos envolvendo a ex-ministra:

Lobby na Casa Civil
setembro de 2010 Reportagem de VEJA revelou que o filho de Erenice, Israel Guerra, comanda, com ajuda da ministra, um esquema de lobby dentro da Casa Civil. Por meio do pagamento de uma “taxa de sucesso”, o filho da ministra facilita a aproximação entre empresários e o governo. Um empresário do setor aéreo relatou ter conseguido contratos de R$ 84 milhões nos Correios após pagar um percentual de 6% ao grupo de lobistas. Nesta segunda-feira, 13, um dos assessores da Casa Civil citados no esquema, Vinícius de Oliveira Castro, pediu demissão.

Em prol dos Sarney
agosto de 2009 A pedido de Dilma Rousseff, Erenice Guerra foi ao gabinete da então secretária da Receita Federal, Lina Vieira, para agendar uma reunião entre as duas. Na ocasião, Dilma pressionou Lina a encerrar uma investigação do Fisco sobre a família de José Sarney. Dilma negou o encontro. Lina revelou detalhes sobre ele, citando Erenice. As imagens do circuito interno de TV do Palácio do Planalto, que poderiam comprovar ou desmentir a reunião, sumiram, como revelou VEJA em julho de 2010.

Dossiê contra FHC
abril de 2008 Como secretária-executiva da Casa Civil, Erenice Guerra comandou a elaboração de um dossiê sobre gastos pessoais do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e da ex-primeira-dama Ruth Cardoso. O documento seria usado para chantagear políticos da oposição, em revanche às revelações de gastos de ministros de Lula feitas pela CPI dos Cartões Corporativos. O governo blindou Erenice e Dilma. A número 2 da Casa Civil sequer foi citada na sindicância interna sobre o caso

Filho de Erenice 'nomeou' amigos para pasta de Dilma

FOLHA DE S. PAULO, 18 de setembro de 2010

O filho de Erenice Guerra, que perdeu o cargo após acusações de tráfico de influência, levou amigos para trabalhar na Casa Civil quando o ministério era comandado por Dilma Rousseff, candidata do PT à Presidência.

Israel Guerra e dois amigos são apontados por empresários como o "grupo do lobby" que usava uma empresa privada para intermediar reuniões, viabilizar projetos e liberar recursos no governo.

Israel, Stevan Kanezevic, Vinícius Castro e Marcelo Moreto trabalharam juntos na Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). Em seguida, os três amigos do filho de Erenice foram nomeados para ocupar cargos na Casa Civil sob Dilma --quando Erenice, seu braço direito e depois sucessora, era secretária-executiva da pasta.

Vinícius foi nomeado assessor de Erenice Guerra. Stevan é cedido para o Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia), subordinado à Casa Civil. Um ano antes, Moreto, que não foi citado por envolvidos no escândalo até aqui, já havia trocado a agência pelo cargo de assessor técnico do Sipam.

Tão logo Vinícius e Stevan saíram da Anac, foi aberta em Brasília a Capital Consultoria, que começou as atividades em 6 de julho de 2009.

Trata-se da firma que tem Vinícius e Israel como sócios ocultos e que foi usada para ajudar uma empresa do setor aéreo a conseguir autorização da Anac e fechar contrato com os Correios, primeiro negócio a lançar suspeitas de tráfico de influência.

Stevan é citado pelos consultores Fábio Baracat e Rubnei Quícoli como um dos mais atuantes nas promessas de abrir portas. Estava sempre presente nas reuniões com Vinícius e Israel.

Ontem, Stevan pediu demissão do cargo no Sipam e voltou à Anac. Ele é o terceiro que cai depois das acusações de que o lobby da Capital levou empresários para audiência dentro da Casa Civil, como a Folha revelou.

Tio de Vinícius, o ex-diretor dos Correios Marco Antonio de Oliveira afirmou à Folha que o filho de Erenice fazia nomeações na Casa Civil.

Ele confirma que o próprio sobrinho foi um dos indicados de Israel. "Eles se conheceram na Anac e, na saída da Anac, o Vinícius recebeu o convite do Israel para trabalhar na Casa Civil", disse.

Oliveira reclama que a irmã foi usada como laranja. No papel, uma das sócias da Capital é a mãe de Vinícius, Sônia Elizabeth Oliveira Castro, que sobrevive vendendo queijo no interior de Minas.

"[Criaram] uma empresa para fazer consultoria geral. Ele não poderia aparecer porque era do governo. Por isso botou minha irmã. Acho uma coisa deplorável", disse.

Segundo relato de Vinícius ao tio, a Capital resolveu um problema da empresa MTA (Master Top Airlines) na Anac, que renovou o contrato com a companhia cargueira, ampliando o prazo de três para dez anos mesmo com parecer técnico contrário da agência. "Era esse o perfil deles, vinham da Anac."

Outros lados - Procurados pela Folha, Stevan e Vinícius não foram localizados. O Sipam informou que Moreto está em férias. Ele também não foi localizado. O advogado de Israel, Eduardo Ferrão, não respondeu às ligações.

A Casa Civil informou que Moreto foi nomeado pela Secretaria Executiva da Casa Civil, à época ocupada por Erenice. Stevan foi nomeado pelo secretário de Administração, Norberto Temóteo.

"Essas nomeações atenderam a solicitações do diretor-geral do Sistema de Proteção da Amazônia", diz a nota.

Blindando Dilma

O GLOBO, Merval Pereira, 18 de setembro de 2010


O Palácio do Planalto está agindo rapidamente para se livrar de todos os traços do esquema de tráfico de influência que a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra implantou no principal gabinete do Palácio do Planalto, ao lado do do presidente da República.

Desta vez o presidente Lula pode até mesmo dizer, como costuma, que de nada sabia, já que sua ligação com Erenice era apenas administrativa.

Se tivesse colocado, como queria, Miriam Belchior no lugar de Dilma, teria sido uma indicação pessoal baseada numa relação histórica de luta partidária com o próprio presidente.

Miriam seria uma personagem na política palaciana menos importante do que foi José Dirceu, mas, assim como é difícil imaginar que Dirceu montou o esquema do mensalão sem que Lula fizesse a menor ideia do que estava acontecendo, ficaria também difícil a ele se dissociar das ações de Miriam Belchior, viúva do ex-prefeito assassinado Celso Daniel, a quem Lula reservara papel de destaque no seu primeiro mandato.

Os erros de Erenice, amplamente divulgados e comprovados a cada dia, têm apenas uma ligação política possível, e é com Dilma Rousseff.

Já escrevi aqui que a relação de Dilma com Erenice é a mesma de Lula com Dilma: criador e criatura.

A família de Erenice não atuaria com tamanha desenvoltura em diversas áreas do governo se não tivesse a certeza de que estava segura por laços políticos e, sobretudo, de amizade.

Fica difícil acreditar que, tendo feito tudo o que está relatado nos últimos dias quando era o braço-direito de Dilma na Casa Civil, Erenice Guerra não deixou rastros de sua movimentação e nem dava à sua chefe imediata e amiga informações sobre o que estava fazendo.

Quanto às alegações de que o consultor Rubnei Quícoli, por sua ficha corrida nada exemplar, não teria credibilidade para sustentar as denúncias, é bom lembrar que em todos os casos, em que surgiram os escândalos dos últimos anos, foram justamente pessoas envolvidas nas negociatas que denunciaram seus "cúmplices".

Pedro Collor não se entendeu com o irmão presidente sobre a partilha do butim e denunciou Fernando Collor. Roberto Jefferson sentiu-se traído em seu esquema montado nos Correios e abriu o bico, denunciando o mensalão.

Quando o empresário e consultor Rubnei Quícoli diz que parte da propina que lhe pediram seria alegadamente para financiar a campanha da ministra Dilma Rousseff à Presidência da República, surge um indício de uso de caixa dois na campanha eleitoral que precisa ser investigado e esclarecido.

Ainda mais porque as demais denúncias feitas acabaram mostrando-se verdadeiras, provocando a saída não apenas da ministra como de vários parentes seus de diversos cargos espalhados pela República.

Ontem, mais um servidor do Palácio do Planalto foi demitido rapidamente. O consultor Rubnei Quícoli apontara em entrevista um tal de Stevan, que descreveu assim: "Ele é um avião, tem uma porta aberta na Casa Civil e outra no BNDES." Em meio às negociações para aprovação de projeto de energia solar no Nordeste - avaliado em R$ 9 bilhões, que não saiu do papel - surgiu Stevan, que seria a ligação do governo com a Capital Consultoria.

Pois não é que existe mesmo o tal de Stevan? Seu sobrenome é Knezevic, e ele trabalhava no Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam), órgão subordinado à Casa Civil.

Ele regressou ao seu órgão de origem, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que, digase de passagem, está transformada em um enorme cabide de empregos para os apaniguados do governo, assim como os Correios, a Receita Federal e outras estatais.

O "aparelhamento" do Estado, que tem um caráter político de controle das atividades por membros dos part i d o s e s i n d i c a t o s q u e apoiam o governo, tem também, ou sobretudo, o seu lado mercantilista.

Vários parentes de Erenice passaram por lá, inclusive o filho Israel Guerra. Não é difícil imaginar que os dois, Stevan e Israel, conheceramse na Anac e de lá partiram para as ações de lobby no Palácio do Planalto.

Há outro detalhe interessante no episódio da demissão da ministra Erenice Guerra: ao obrigá-la a sair do Gabinete Civil, o presidente Lula está retirando, pelo menos simbolicamente, seu aval às decisões da candidata Dilma Rousseff.

Se, eleita presidente, Dilma pretendia colocar Erenice no Gabinete Civil, contra a vontade de Lula, que quer naquele lugar o ex-ministro Antônio Palocci, que outras escolhas Dilma fará? Sua capacidade de nomear os principais assessores sai do episódio bastante arranhada, além do que persiste uma estranha sensação de que seu eventual futuro governo, pois a eleição para o Palácio do Planalto e seu entorno é tida como uma fatura já liquidada, começou em clima de crise.

O que a família Guerra não poderia fazer num governo da "madrinha" Dilma?

É impressionante como pessoas de bem aceitam participar de um órgão que não tem a menor influência nas decisões do governo.

Presidida pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal José Paulo Sepúlveda Pertence, a Comissão de Ética Pública decidiu, em meio à crise gerada pela demissão da ministra Erenice Guerra, puni-la com uma advertência porque ela não apresentou documentos com informações sobre a sua evolução patrimonial e relação de parentes ocupando cargos públicos.

Uma punição que deveria ter sido dada em maio, quando expirou o último prazo. E poderia ter evitado que tantos parentes da ministra se espalhassem pelo governo.

A Comissão já havia sofrido uma grande derrota em 2007, quando tentou fazer com que o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, deixasse de acumular o ministério com a presidência do PDT.

A queda de braço levou a que a comissão sugerisse a demissão do ministro, e a solução foi encontrada meses depois: Lupi fingiu que se licenciou da presidência, e a Comissão fingiu que havia vencido a disputa.

Franklin Martins resistiu até o fim

VEJA, Radar on-line, Lauro Jardim

Desde terça-feira (14), o governo em peso já era a favor da demissão de Erenice Guerra. Foram apenas dois os ministros que resistiram até o último minuto: Franklin Martins e Alexandre Padilha. Franklin era o mais exaltado. Mandando às favas a moralidade pública, não queria ninguém fora do governo por causa de uma revelação cuja origem foi a imprensa. Ele perguntava aos colegas: “Se entregarmos a Erenice, que cabeças pedirão depois?”. Como Lula gosta de repetir: “Quem não deve não teme”.

Apenas cálculo eleitoral

O ESTADO DE SÃO PAULO, Editorial, 18 setembro de 2010


No encontro que tiveram domingo à noite para tratar da revelação de uma pesada operação de traficância na Casa Civil do Planalto, o presidente Lula poderia ter determinado à ainda ministra Erenice Guerra que se licenciasse até o esclarecimento cabal da denúncia que a envolvia por tabela e, diretamente, um de seus filhos, Israel. Por muito menos, afinal, o presidente Itamar Franco afastou o ocupante do mesmo cargo no seu governo, Henrique Hargreaves - para readmiti-lo quando as acusações contra ele não foram comprovadas.

Mas Lula não parece aprender com o exemplo alheio nem com a própria experiência. Com o exemplo, no caso, porque a sua visão da ética pública não é a de princípios, mas a de resultados. E com a experiência porque, ao fim e ao cabo, não precisou pagar o preço devido, fossem outras as circunstâncias e, quem sabe, outro fosse o país, pela relutância em se privar do ministro José Dirceu, também da Casa Civil e pivô do mensalão, e do seu colega da Fazenda, Antonio Palocci, no escândalo da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo.

Erenice Guerra saiu daquela reunião com a cabeça no pescoço não porque o chefe, como diria, se acha "obrigado a acreditar" no que as pessoas lhe falam, e Erenice jurou-lhe por tudo o que é sagrado que era inocente. Mas porque ele avaliou que a reportagem incriminadora da revista Veja não teria o potencial de respingar na candidata Dilma Rousseff - que está para Erenice como Lula está para ela, criadores e criaturas - da mesma forma que não respingaram, a julgar pelas pesquisas, as violações em série do sigilo fiscal de parentes e aliados do opositor José Serra.

Por isso, o que o lulismo se ocupou em fazer nos dias seguintes foi desqualificar o noticiário sobre as movimentações da espaçosa família Guerra pelas pradarias do poder. Nesse exercício de mistificação e cumplicidade, Dilma levou a palma, ao afirmar que tudo se resumia a um "factoide". Sintomaticamente, a soberba de Lula, a certeza de que o seu prestígio garantiria a incolumidade da candidata, desarmou a sua apuradíssima intuição. Ele decidiu manter Erenice no lugar enquanto não surgisse um fato novo que agravasse a crise, mesmo depois de a ministra ter ido além das tamancas ao culpar um "candidato aético e já derrotado" por suas atribulações.

O fato novo não tardou a surgir. Na quinta-feira, a Folha de S.Paulo publicou declarações de um agenciador de negócios, segundo as quais Israel e a sua patota, em troca da obtenção de recursos do BNDES para um bilionário projeto de energia solar, queriam receber R$ 240 mil para acelerar a tramitação do pedido, 5% sobre o valor do financiamento, quando saísse - e, de quebra, um ajutório de R$ 5 milhões para a campanha de Dilma. Decerto achando a conta salgada demais, a firma interessada se recusou a pagar. Por sua vez, o seu agente disparou e-mails para a Casa Civil reclamando das cobranças e fazendo ameaças. Passados mais de 7 meses, falou.

Com incomum rapidez, Lula mandou Erenice se demitir. A segunda denúncia, semelhante à anterior, teria enfim convencido o presidente da responsabilidade da ministra. "Quando a gente está na máquina pública, não tem o direito de errar", proclamou. "E se errar, a gente tem de pagar." Conversa. O que o fez defenestrar Erenice - a quem havia nomeado por insistência de Dilma, quando ela se desincompatibilizou - foi o temor manifestado pela campanha petista, com base em pesquisas, de que desta vez a candidata corria o risco de ser atingida pelos estilhaços das malfeitorias do círculo da amiga em quem apregoava confiar.

A demissão de Erenice não elimina a hipótese. Os episódios expostos aconteceram quando Dilma era ministra e Erenice a sua mais íntima colaboradora. É implausível que ela não lhe tivesse contado nem uma versão sanitizada dessas histórias. Plausível, isso sim, é que Dilma não quisesse saber mais. Como Lula não quis saber detalhes do mensalão para o qual foi alertado duas vezes. A ignorância assumida é um ato de vontade política. Eles olham para o outro lado para não fitar o ambiente propício à corrupção que semearam no Planalto como parte de um projeto de poder.

Cidades verticais, civilização rural?

O ESTADO DE S. PAULO, Washington Novaes, 17 de setembro de 2010,

Na época em que morou no Rio de Janeiro, de meados da década de 1960 ao início da de 1980, o autor destas linhas se assustava com a rapidíssima verticalização da até ali amena "Cidade Maravilhosa", a partir da derrubada do gabarito de quatro pavimentos nas praias de Ipanema e do Leblon, seguida pelo início da ocupação intensa de São Conrado e da Barra da Tijuca, até então lugares quase só de piqueniques e praias prolongadas dos poucos donos de automóveis. Dizia, por isso, em tom de blague, que chegaria o dia em que derrubariam o Pão de Açúcar para, com o material de demolição, aterrar a Lagoa Rodrigo de Freitas e, nela e nos vizinhos Jockey Club e Jardim Botânico, erguer imensos edifícios. Passados 30 anos, a lagoa não foi aterrada, mas, assoreada por esgotos e outros materiais, já provoca enchentes nas chuvas mais fortes; discute-se se uma parte do Jardim Botânico deve ou não ser atribuída a moradores; e, agora (Estado, 10/9), informa-se que o Jockey Club do Rio já negocia 20% de sua área para construção de edifícios de escritórios, um centro comercial e um centro médico.

Será esse um destino inescapável das cidades brasileiras? Há uns dois meses (Estado, 17/6), o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo (Condephaat) decidiu tombar a área ocupada pelo Jockey Club de São Paulo, que também pretendia ceder cerca de 100 mil metros quadrados para a construção de torres comerciais e um shopping center - seguindo uma tendência de verticalização ainda mais forte que a do Rio. Um mapa da verticalização de São Paulo (Cia. de Imprensa, 25/8) mostra que entre 1990 e 2000, segundo dados do IBGE, os bairros do Jabaquara, Moema, Pinheiros e Ibirapuera registraram mais de oito domicílios novos por metro quadrado de solo.

Há outros bairros com tendência semelhante, ainda mais lembrando que o mesmo IBGE prevê que São Paulo terá mais 600 mil habitantes em dez anos. No Rio, o Tribunal de Contas do Município mostra (O Globo, 27/6), preocupado, que a expansão urbana levou à ocupação de áreas de preservação ambiental por 65 favelas (eram 17 em 2003).

Qual será o caminho adequado? O adensamento de áreas já edificadas, para impedir que novas ocupações nas periferias exijam do poder público altos investimentos (sem recursos disponíveis) na instalação de todas as infraestruturas urbanas (viária, de energia, saneamento, educação, saúde, segurança, transporte, lazer, etc.)? Mas esses adensamentos também não geram problemas indesejáveis (congestionamentos, poluição, insegurança, etc.)? Será o IPTU progressivo para áreas não edificadas e imóveis ociosos (420 mil na capital) uma solução? Não vamos chegando a um tempo em que até a ocupação de áreas por cemitérios se torna problemática, como em São Paulo, com geração de necrochorume e contaminação do solo e da água em 40 deles (Estado, 24/5)? Problemas como os de São Paulo não se repetem da mesma forma em toda uma rota de cidades "médias" que chegam ao Triângulo Mineiro?

Ao que parece, chega-se a um momento em que a questão terá de ser repensada de forma muito ampla. Vários estudos nos últimos anos têm mostrado o agravamento do problema na mesma proporção em que se acentua a urbanização no mundo. Já chegamos a mais de 50% da população global vivendo em áreas urbanas - o que amplia muito certas necessidades, como as de transporte, energia, habitação, alimentação industrializada, etc. A China, em poucas décadas, urbanizou mais de 300 milhões de pessoas e multiplicou suas necessidades de energia (e as emissões poluentes, pelo uso intensivo do carvão). Ainda vai urbanizar mais 100 milhões. A Índia, quando se discutem mudanças climáticas, tenta demonstrar sua impossibilidade de renunciar ao carvão mineral como fonte energética, já que 400 milhões de indianos ainda não dispõem de energia elétrica.

Só que o caminho da urbanização progressiva, que é parte do modelo industrial/civilizacional que vivemos, já se mostra inviável. Estudo recente publicado na revista Science por Steven Davis e vários outros cientistas dos EUA e do Canadá (Agência Fapesp, 10/9) mostra que as atuais tecnologias disponíveis são insuficientes para manter a concentração de dióxido de carbono na atmosfera em nível (até 450 partes por milhão) que não permita a temperatura do planeta subir mais que dois graus Celsius. Só com as estruturas atuais, sem um só automóvel novo ou novas fábricas, a emissão de dióxido de carbono adicionará em 50 anos mais 496 bilhões de toneladas à atmosfera. E com isso a temperatura se elevará em mais 1,3 grau (já subiu 0,6). Se a concentração de poluentes na atmosfera, hoje em 385 partes por milhão, continuar subindo e ultrapassar 450 partes por milhão, a temperatura poderá subir além de 2 graus, com consequências gravíssimas.

Mas continuamos a urbanizar. A colocar no mundo 170 mil automóveis novos por dia. E essa e outras fontes poluidoras, principalmente combustíveis fósseis, seguem, segundo a Agência Internacional de Energia, recebendo US$ 557 bilhões anuais em subsídios de governos, enquanto as energias "limpas" e renováveis recebem US$ 46 bilhões. Para onde irá o chamado padrão civilizatório?

O professor Ignacy Sachs, mestre de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris, defende, na revista Estudos Avançados, da USP, um modelo que se assente no tripé biodiversidade-biomassas-biotecnologias, que permita a países tropicais como o Brasil "um novo ciclo de desenvolvimento rural", que configure "civilizações modernas do vegetal, movidas a energia solar captada pela fotossíntese". Seria um modelo capaz de manter populações na zona rural, com renda e dignidade; produzir bioenergias, adubos verdes, materiais de construção, matérias-primas industriais, insumos para química verde, farmacopeia e cosméticos. É um tema que precisa ir com urgência para nossa pauta política.

Assembleia Legislativa vai na contramão ao tolher imprensa

GAZETA DO POVO, 18 de setembro de 2010

No Congresso e em outros estados, jornalistas têm liberdade para trabalhar. No Paraná, equipe de reportagem foi barrada


Ao contrário da Assembleia Legislativa do Paraná (AL), que barrou a entrada na Casa de uma equipe de reportagem da Gazeta do Povo na última quinta-feira (veja reportagem abaixo), o Congresso e cinco dos principais Legislativos estaduais do país dão acesso livre e liberdade de trabalho aos jornalistas. Em nenhuma dessas Casas há setores “proibidos à imprensa” ou a necessidade de que funcionários do setor de comunicação acompanhem de perto o trabalho dos jornalistas dentro do prédio, como ocorre no Paraná. Elas também não impõem regras para dificultar o trabalho da imprensa como no caso paranaense, que pretende limitar o acesso à Assembleia a apenas quatro profissionais por veículo.

Na tarde da última quinta-feira, uma equipe de reportagem da Gazeta do Povo – que investiga denúncias de supostos funcionários fantasmas na Assembleia do Paraná – foi in­­­formada de que, por ordem do diretor-geral da Casa, Eron Abboud, o trabalho da imprensa está liberado apenas no prédio onde ficam o plenário e os gabinetes parlamentares, desde que com o acompanhamento de um servidor do setor de comunicação. A entrada no setor administrativo, porém, está proibida para pessoas externas à As­­­­sembleia.

A medida se dá no mesmo momento em que a Casa, por meio de um processo de credenciamento, quer limitar o trabalho da imprensa a apenas “quatro profissionais por veículo, levando em consideração tiragem e auditagem de circulação”. A decisão, criticada duramente pelo Sindicato dos Jornalistas do Paraná, não se repete em nenhum dos Legislativos consultados pela Gazeta do Povo. Além disso, barrar a entrada da imprensa em determinados setores da Casa e exigir a presença de um servidor ao lado do repórter durante a produção da reportagem é exclusividade da Assembleia paranaense.

Para Gil Castelo Branco, diretor da ONG Contas Abertas – especialista em fiscalizar gastos públicos –, barrar a entrada de jornalistas é um fato gravíssimo, que precisa ser revisto imediatamente em nome do interesse público e da moralidade administrativa. Segundo ele, a cobertura feita pela imprensa dos atos do poder público é importantíssima na medida em que os jornalistas representam a sociedade civil organizada nesse contexto. “Até pouco tempo atrás, a Assembleia do Paraná era a casa da mãe Joana. Então, se pretende ser de fato a casa do povo, não pode jamais barrar a entrada da imprensa”, afirma. “A medida só faz suscitar mais dúvidas sobre o que acontece nos corredores da Casa.”

A opinião é compartilhada pelo professor de Ciência Política Ricardo Costa de Oliveira, da UFPR. Na avaliação dele, além de um ato inconstitucional, a postura da Assembleia é “autoritária e descabida, prejudicando ainda mais a imagem da Casa”. “É um direito democrático da imprensa acompanhar os trabalhos legislativos, ainda mais em se tratando da casa do povo”, defende. “Soa como uma retaliação à imprensa em função das últimas notícias publicadas, até porque os problemas continuam e persistem.”


Entrada liberada
Veja como funciona o trabalho da imprensa no Congresso e em outras assembleias do país:

Senado -
Após obter credencial, o jornalista tem acesso às áreas comuns. Para situações específicas, é necessário contatar o setor que será abordado e obter uma autorização prévia.

Câmara dos Deputados - Após credenciamento, o acesso ao prédio é irrestrito. Para fazer imagens no plenário é preciso autorização.

Assembleia de MG - Não existe restrição à entrada da imprensa, que pode transitar livremente pela Casa. Apenas no plenário é exigida credencial.

Assembleia do RJ - Não há restrição à entrada dos jornalistas, que, para trabalhar no plenário, recebem um selo de validade diária.

Assembleia de SP - Os jornalistas precisam preencher cadastro e portar crachá. A partir de então, têm livre acesso ao prédio.

Assembleia do RS - A imprensa tem acesso livre e irrestrito a todo o prédio, exceto dentro do plenário, onde só é permitida a entrada de fotógrafos e cinegrafistas.

Assembleia de SC - Os jornalistas têm entrada livre, bastando portar crachá do veículo. Exceto nas áreas que envolvam a segurança do prédio, podem circular de forma irrestrita.


Assembleia barra entrada de jornalistas

GAZETA DO POVO, 17 de setembro de 2010

A Assembleia Legislativa do Paraná barrou na última quinta-feira (16) a entrada na Casa de uma equipe de reportagem da Gazeta do Povo que investiga denúncias de supostos funcionários fantasmas no Legislativo estadual. A ordem foi dada pelo diretor-geral da Casa, Eron Abboud. Nesta semana, inclusive, a coordenadoria de divulgação do Legislativo encaminhou ofício aos veículos de comunicação do estado criando regras para dificultar o trabalho da imprensa.

Na tarde de ontem, ao se identificar na portaria da Assembleia, a equipe de reportagem da Gazeta do Povo foi informada que deveria aguardar a chegada de funcionários da coordenadoria de comunicação, que prestariam o atendimento necessário. Em seguida, os repórteres disseram aos funcionários do setor de comunicação que pretendiam averiguar a situação de alguns servidores lotados na administração. A resposta recebida foi que isso só poderia ser feito com a autorização do diretor-geral, que não estava na Casa no momento.
Após contatarem Abboud por telefone, os funcionários do Legislativo informaram que o trabalho da imprensa está liberado apenas no prédio onde ficam o plenário e os gabinetes parlamentares, desde que com o acompanhamento de um servidor da Casa. A entrada no setor administrativo, porém, está proibida para pessoas externas à Assembleia, sob a justificativa de que, nos últimos dias, havia cabos eleitorais fazendo campanha e pedindo votos aos servidores, o que é vedado pela legislação eleitoral. Além disso, pessoas estariam se apresentando na portaria como jornalistas para terem livre acesso à Casa. No regimento interno da Assembleia, entretanto, não há nada que restrinja o trabalho da imprensa no interior do prédio, apenas limita a entrada no plenário.

Outro argumento usado pela Assembleia é o de que, de acordo com o Estatuto do Servidor Público do Paraná, os servidores estaduais são proibidos de dar entrevistas. No entanto, o estatuto veda apenas a concessão de declarações que envolvam informações sigilosas da administração pública.

Diante do impasse, a equipe de reportagem foi encaminhada ao comitê de imprensa e recebeu a informação de que precisaria protocolar um ofício na Casa contendo as questões que os repórteres buscavam. Segundo a Assembleia, somente serão respondidas a partir de agora dúvidas levantadas por meio de documento oficial endereçado ao diretor-geral, nos casos relativos a assuntos administrativos.

A medida se dá no mesmo momento em que a Assembleia realiza o credenciamento dos jornalistas que fazem a cobertura do Legislativo estadual. Chama a atenção, porém, o fato de a Casa limitar o acesso a apenas “quatro profissionais por veículo, levando em consideração tiragem e auditagem de circulação”. A decisão foi criticada ontem pelo Sindicato dos Jornalistas do Paraná (leia ao lado).

Essa não é primeira vez que a Casa limita o trabalho da imprensa. Desde abril, fotógrafos e cinegrafistas estão impedidos de fazer imagens no plenário – porque estariam atrapalhando a sessão – e tem a atuação restrita ao espaço reservado aos jornalistas, no fundo do ambiente. A entrada de carros da imprensa no estacionamento da Assembleia também está proibida.


Sindicato critica forma de credenciamento na Assembleia
Em nota divulgada ontem, o Sindicato dos Jornalistas do Paraná repudiou o informe de credenciamento que a Assembleia distribuiu nesta semana aos jornalistas que fazem a cobertura dos trabalhos da Casa. No documento, o Legislativo estadual afirma que o credenciamento foi feito com base em sugestões do próprio sindicato.

A entidade, porém, criticou as normas estabelecidas pela Assembleia, afirmando que “rechaça o modelo proposto, por entender ser restritivo, no que tange ao exíguo prazo apresentado – o credenciamento iria apenas até o dia 25 de setembro –; à exigência de uma identificação nominal; e ao reduzido número de profissionais admitidos por veículos”.

Além disso, o sindicato classifica como estranho o fato de a proposta original “não ter sido acatada em sua íntegra” e de a Assembleia tentar envolver a entidade “como avalista dessas restrições”. O sindicato informou ainda que já solicitou uma nova audiência com a coordenadoria de divulgação da Casa para voltar a discutir o assunto.

Em ano epidêmico, Paraná já confirmou quase 27 mil casos de dengue

GAZETA DO POVO, 18 de setembro de 2010

Maior parte dos casos confirmados teve a transmissão dentro do próprio estado. Até 15 de setembro, foram registradas oito mortes por causa da doença



O número de casos confirmados de dengue no Paraná cresceu 33 vezes em 2010, se comparado aos dados de 2009. Neste ano, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) já registrou 26.987 casos confirmados da doença, cerca de 46% dos 59.195 casos suspeitos. A transmissão da doença se concentrou no estado: são 26.141 casos autóctones, que são contraídos no próprio estado, contra 846 casos importados. Esses são os dados registrados até a última quarta-feira (15). Em 2009, no mesmo período, o estado registrou 8.222 casos suspeitos de dengue, sendo que 814 foram confirmados.

Como 97% dos casos envolvendo a doença foram contraídos no Paraná, a Sesa apontou algumas razões para o crescimento do número de pessoas com dengue. No último boletim epidemiológico da secretaria, divulgado em 31 de agosto, são apontados como fatores determinantes o alto índice de infestação predial apresentado por várias cidades no início deste ano e a dificuldade em responsabilizar a sociedade para a adoção de medidas simples de prevenção. Além disso, o inverno atípico, com temperaturas elevadas para a estação, também é favorável para a reprodução do mosquito da dengue.

A Sesa compara os dados deste ano com os números de 2007, quando houve uma epidemia no estado e foram notificados 44.897 casos suspeitos e 24.535 casos confirmados. Mesmo comparado a um ano com situação epidemiológica semelhante, os números de 2010 apresentaram crescimento. Houve uma variação de 36% em relação aos casos suspeitos e de 6,5% em relação aos casos confirmados.

No Paraná, a regional que teve mais casos de dengue confirmados foi a de Maringá, no Noroeste, com 8.507 casos. Em seguida, a regional de Foz do Iguaçu, no Oeste, que apresentou 6.701 casos confirmados da doença, e a regional de Londrina, no Norte, com 2.982 casos de dengue.

Em Curitiba, segundo a administração municipal, foram registrados 67 casos da doença neste ano. Os pacientes foram todos contaminados fora da cidade.


Estudo desvenda formação da casca impermeável dos ovos de mosquitos
Os estudos de um cientista brasileiro abrem novas possibilidades de controle da malária e, no futuro, da dengue. Gustavo Rezende, do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), analisou a formação da casca impermeável dos ovos de mosquitos. Pesquisador do Laboratório de Fisiologia e Controle de Artrópodes Vetores (IOC), o biomédico identificou um conjunto de genes associados à impermeabilização dos ovos do mosquito Anopheles gambiae, principal transmissor de malária na África.

O estudo foi realizado no IOC e na Universidade de Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, onde Rezende desenvolveu parte de seu doutorado. A equipe de pesquisadores utilizou um procedimento que “fixa” o embrião do A. gambiae: mata o embrião preservando todas as suas estruturas morfológicas e seu material genético.

No passo seguinte, os pesquisadores aplicaram uma técnica de biologia molecular denominada microarranjo, que permitiu comparar quais genes, dentre todo o genoma do mosquito, estavam sendo expressos em uma estrutura conhecida como cutícula serosa, provavelmente responsável por impermeabilizá-los e permitir que continuem viáveis mesmo após ficar no seco por muitas horas ou até dias, dependendo da espécie.

“Ao todo, identificamos cerca de 360 genes muito mais expressos na serosa do que no restante do embrião no momento da formação da cutícula serosa, alguns com expressão 20 vezes maior”, conta Rezende.

Ainda que as descobertas estejam relacionadas com A. gambiae, os resultados podem ser importantes no combate da dengue. “Identificar os principais genes relacionados à impermeabilização dos ovos pode ser fundamental nos esforços de controle de populações de vetores”, diz Rezende. “Hoje já existem inseticidas capazes de inibir a síntese de quitina [um açúcar muito presente na estrutura da cutícula serosa] do Aedes aegypti [o mosquisto transmissor da dengue]. Porém, nossas descobertas podem servir de base para conhecer melhor os processos de produção dessa e de outras moléculas importantes para os insetos.”