terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O Rio colhe suas tristezas

BRASIL LIMPEZA, José Pires, 18 de janeiro de 2011


Várias histórias comoventes nesta tragédia que acontece no Rio de Janeiro. Primeiro a devastação do sítio do Tom Jobim pela violência das águas. Por coincidência eu andava nesses dias relendo coisas dele, revistas com entrevistas que tenho muito bem guardadinhas, biografias e, claro, uma escutada nesta ou naquela música que uma frase ou um fato traz à lembrança [...é, mas quando é que você não está fuçando em alguma coisa do Tom Jobim? É verdade, mas aconteceu mesmo].

O simbolismo da queda da casa e a destruição no sítio é bem forte. Num belo livro escrito pela irmã do compositor, Helena Jobim, ela conta uma breve história ocorrida com ele em Jerusalém, quando depois de um show eles foram tirar uma foto em uma plantação de oliveiras e Jobim escolheu ficar do lado de uma árvore em meio a tantas outras.

Depois de feita a foto perceberam uma pequena placa onde se lia que exatamente aquela árvore havia sido plantada pelo pianista Arthur Rubinstein. De pronto um amigo de muitos anos, Tião Neto, disse para o compositor: “Não existem coincidências”.

Por coincidência é mais ou menos assim que eu penso. A destruição do sítio onde Jobim fez tantas coisas boas no Rio deveria ser vista como um alerta sobre os perigos de que ele já falava há muito tempo e que começam a acontecer de forma muito grave e continuada.

Ou será coincidência que o Rio colha tristezas aindas mais pesadas exatamente um ano depois da tragédia em Ilha Grande?

Em torno da destruição do lugar de onde, entre tantas belezas, saiu Dindi, Matita Perê e Águas de Março, tem também outras histórias comoventes. A do cachorro que ficou de guarda junto ao túmulo da dona morta durante a tempestade é de dar um nó na garganta. Ainda bem que geralmente escrevo sozinho, sem o risco de que vejam a leitura aguar meus olhos.

Nem é preciso ler a história. As fotos tiradas do bicho ao lado da sepultura precária da dona é daquelas que compõem toda uma narrativa. Uma das fotos é de Wilton Júnior, da Agência Estado. A outra é de Vanderlei Almeida, da AFP, que republico aqui. O amontoado de terra do túmulo recém-fechado, o ar triste do animal à espera, tudo foi captado de forma admirável. Aqui você pode ver uma sequência das fotos.

Numa das reportagens sobre o cachorro, uma voluntária que socorria animais conta que não havia preocupação alguma com o resgate dos bichos que sofreram com o desastre. Bem, pode-se dizer que até os seres humanos ficaram praticamente no abandono. E se mesmo em situações normais não se vê autoridade responsável por coisa alguma, quanto mais numa condição dessas. Porém, o descaso com os animais não deixa de ter uma relação com o mesmo sentimento que, em grande parte, levou ao descaso abandono da técnica e do conhecimento e, enfim, à criação das más condições ecológicas responsáveis pelo desastre naquela região.

Outro caso terrível é do aposentado que foi soterrado com a família e viu a mulher e os filhos morrerem ao seu lado. É uma história impressionante contada pelo jornal Extra, do Rio. É uma daquelas reportagens que devia vir acompanhada de um lenço. Você pode ler clicando aqui ou aqui.

Essas histórias trazem o lado humano da questão. É o sofrimento cotidiano e as perdas que passarão infelizmente a compor a memória de toda uma região. Mesmo um cético como eu sabe que, no final, o que importa é o nosso semelhante. Fiquei aqui pensando como será difícil para os sobreviventes dessa tragédia darem contnuidade às suas vidas depois que as coisas voltarem a uma relativa normalidade por lá.

O número de mortos já se aproxima de setecentos. É provável que chegue à mil. Naquela região será difícil encontrar alguma pessoa não tenha perto de si uma história pavorosa que ficará em sua cabeça talvez por toda a vida. Este sofrimento psicológico nenhum jornal consegue captar e sobre ele é praticamente impossível obter indenização ou cobrar responsabilidades. É coisa que não aparece em estatísticas e estudos.

Em Nova Orleans, em 2005 morreram cerca de 1500 pessoas. Hoje no Rio, ainda com muita gente possivelmente soterrada, o número de mortos já é quase a metade do que teve naquele desastre nos Estados Unidos. E por lá passou um furacão. Mas com os governos que temos o brasileiro não precisa disso para sofrer.


Fugindo da culpa
Aqui no Brasil nossos furacões são outros: as autoridades políticas se incumbem de criar o cenário perfeito para os desastres. Quando Nova Orleans viveu aquela situação dramática, a nossa esquerda foi rápida em apontar o presidente George W. Bush como o vilão. Bush certamente teve sua culpa, apesar de que não concordo com o uso de espantalhos na política, no estilo estratégico da esquerda brasileira.

Já no drama vivido hoje pelos brasileiros com as chuvas, essa mesma esquerda, em blogs e sites muito bem pagos com dinheiro público ou com favorecimentos de governos, investe contra a imprensa que busca contar o que se passa no Rio. Com isso, esses braços articulados do poder tentam desviar o foco dos culpados pela tragédia. E quem são? Ora, é a presidente Dilma Rousseff e o governador Sérgio Cabral. Os dois são a continuidade de governos anteriores. Dilma vai para o terceiro mandato petista. Cabral foi reeleito.

Teve um tempo em que no Brasil jornalistas pressionavam para o aprofundamento de qualquer investigação e a busca do esclarecimento dos fatos. Hoje jornalistas acoitados pelo poder petista trazem essa novidade de atacar a imprensa quando ela faz direito seu trabalho.


O que ocorre no Rio espanta pela enormidade e pelo peso dramático de tantos mortos, mas na essência não é muito diferente do abandono cotidiano que os cidadãos sofrem do poder público em todas as cidades brasileiras. A população sofre com serviços precários ou até com a total ausência em questões básicas pelas quais pagam impostos. Os brasileiros penam uma barbaridade enquanto o dinheiro público escoa na roubalheira, no pagamento de salários altos e mordomias para os políticos e no mau uso ocasionado por má-fé ou deficiência técnica.

E nem estou falando de direitos que os político exploram como se fossem doações assistencialistas, mas de serviços que custam muito caro e são pagos pelo cidadão muitas vezes até antecipadamente. É a internet que não funciona, ruas com asfalto precário, falta de segurança, bancos que atendem mal, transporte público de má-qualidade e tantos outros descasos, inclusive a falta de saneamento básico no país onde existem mais aparelhos celulares que tratamento de esgoto.

Acreditar que a chuva é a causa dos problemas serve apenas para ajudar na fuga das autoridades brasileiras às suas responsabilidades. Até porque sabemos muito bem que, quando não é a chuva, a seca também serve como justificativa para eles escapulirem.

Alguém vive numa cidade onde os serviços básicos, aqueles pagos todo mês pelo contribuinte, são prestados de forma razoável pelo administrador público? Bem, se vive então não conte pra ninguém, senão milhões de brasileiros vão querer se mudar para esta cidade.

É preciso apontar os responsáveis e cobrar suas responsabilidades, que vão além de um passeio rápido de coletezinho em frente aos jornalistas quando acontece alguma tragédia. Se fosse possível ser conseqüente na cobrança de responsabilidades pelo que acontece no Rio e em várias cidades brasileiras, muita gente sairia corrida do poder, alguns até iriam para a cadeia. Mas esta possibilidade ainda é a de um país de ficção, um mero desejo de muitos brasileiros. O problema é que enquanto não fazemos um país assim, vamos tendo que chorar muitos mortos.


Número de desabrigados já se aproxima de 14 mil

VEJA ONLINE, 18 de janeiro de 2011


O número de desabrigados nas regiões devastadas pelas chuvas já chega a quase 14 mil. O último levantamento do governo do Rio de Janeiro dá conta de 13.830, mas os abrigos não param de receber gente que perdeu sua casa ou teve que abandoná-la devido ao alto risco de desmoronamento. A previsão é de mais chuva ao longo da noite e por todo o dia desta terça-feira.

A quantidade de desaparecidos também impressiona, agora que os serviços de registro começam a funcionar. Em Teresópolis, a prefeitura informou que o número na Central de Cadastro de Desaparecidos pulou de 36 para 177. Em Petrópolis, há 26 desaparecidos, em Sumidouro, há outros cinco. Em Nova Friburgo, pode haver centenas de pessoas ainda estão isoladas.

Para apoiar o trabalho de busca e resgate nessas regiões de difícil acesso, 700 homens do Exército especializados na construção de pontes móveis foram deslocados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais para a Região Serrana.

A luta das equipes de resgate para encontrar sobreviventes nas regiões atingidas pelos temporais na Região Serrana do Rio de Janeiro prossegue, numa corrida contra o tempo. A cada dia que passa, é mais remota a possibilidade de encontrar pessoas vivas. O número oficial de mortos chegou a 661 nesta segunda-feira, de acordo com a Policia Civil. Para acelerar o trabalho de identificação, a Polícia Civil enviou à Região Serrana mais uma equipe de legistas e papiloscopistas.

Voluntários - O Ministério da Saúde também se mobilizou para reforçar as equipes de profissionais para socorrer as vítimas. O cadastro de profissionais no Portal Saúde já registra mais de 2,2 mil voluntários. Eles estão sendo deslocados para o Rio de Janeiro à medida que as autoridades de saúde do estado solicitam apoio ao Ministério da Saúde.

Nesta terça-feira, 28 dos 40 enfermeiros e técnicos de enfermagem voluntários dos hospitais federais do Rio de Janeiro seguirão para Nova Friburgo.


Chega a 665 o número de mortos por chuvas na região serrana do Rio
ESTADÃO ONLINE,
17 janeiro de 2011

Subiu para 665 o número de mortos pelas chuvas na região serrana do Rio. De acordo com o balanço da Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil do Rio divulgado na tarde desta segunda-feira, há 276 vítimas em Teresópolis, 19 em Sumidouro, 56 em Petrópolis, 2 em São José do Vale do Rio Preto e 312 em Nova Friburgo.

Ainda segundo o balanço, Petrópolis contabiliza 3.600 desalojados e 2.800 desabrigados. Em Nova Friburgo há 3.220 desalojados e 1.970 desabrigados, enquanto Teresópolis registra 960 desalojados e 1.280 desabrigados.

Governo federal vai levar quatro anos para implantar sistema de alerta de desastres naturais

O GLOBO, 17 de janeiro de 2011


A presidente Dilma Rousseff comandou, na manhã desta segunda-feira, uma reunião para tratar da implantação do sistema nacional de alerta e prevenção de desastres naturais, além da reestruturação da Defesa Civil em todo o país. A reunião foi motivada pela tragédia que atingiu a Região Serrana do Rio , para onde irão nesta terça-feira os ministros Fernando Bezerra Coelho (Integração Nacional), José Eduardo Cardozo (Justiça) e Nelson Jobim (Defesa). O ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, reconheceu que a implantação de um eficiente sistema de alerta e prevenção de desastres climáticos levará quatro anos, mas ele espera que os efeitos dessa articulação sejam verificados no próximo verão. ( Leia também: Governo federal libera saque de até R$ 5,4 mil do FGTS para vítimas das chuvas na Região Serrana )

- O prazo máximo é de quatro anos, mas esperamos respostas já no próximo verão - disse Mercadante.

O sistema de alerta e prevenção, segundo Mercadante, inclui o aperfeiçoamento da coleta de informações meteorológicas, o mapeamento das áreas de risco, e o treinamento de pessoal e da própria população em casos de desastres climáticos. O ministro disse que há um mês já chegou ao Brasil um supercomputador para coleta de dados, que vai permitir maior precisão nas previsões meteorológicas, mas ainda há etapas a serem cumpridas como a interligação da rede de radares e a compra de 700 novos radares meteorológicos. Mercadante afirmou ainda que o orçamento do sistema será negociado com a Casa Civil e o Ministério do Planejamento.

Segundo Mercadante, levantamentos indicam que há hoje no país 800 áreas de risco (500 de deslizamento e 300 de inundação) envolvendo 5 milhões de pessoas. Os mapeamentos mais precisos são de Santa Catarina, de São Paulo e do Rio.

O ministro Fernando Bezerra disse que o sistema de Defesa Civil no país é falho e que será necessário organizar a rede. Hoje de cada cinco municípios brasileiros, segundo ele, a Defesa Civil funciona em apenas um .

- Ninguém vai tapar o sol com a peneira - disse Bezerra.

Participaram da reunião, os ministros Mercadante, Cardozo, Jobem Bezerra, Alexandre Padilha (Saúde), Antônio Palocci (casa Civil), Helena Chagas (Comunicação Social), além de Carlos Nobre, do Inpe.

Governo lança sistema de alerta que já deveria estar pronto

O ESTADO DE S. PAULO, 18 de janeiro de 2011

Em 2005, País assumiu com a ONU compromisso de criar um plano semelhante, mas praticamente nada fez


Quinhentas áreas sob risco de deslizamento e 300 ameaçadas por inundações serão o primeiro alvo do Sistema Nacional de Alerta e Prevenção de Desastres Naturais do País, lançado ontem em Brasília. Anunciado como uma nova política para evitar catástrofes a exemplo das que mataram 665 pessoas no Rio, o sistema é, na verdade, uma obrigação internacional já assinada pelo governo Lula há seis anos.

Em 2005, após o tsunami na Ásia, o Brasil e outros 167 países assinaram um acordo em que se previa que, até 2015, todos os governos teriam sistemas de alerta para reduzir riscos de desastres naturais. Passados seis anos, o Brasil praticamente nada fez.

Em um documento revelado com exclusividade pelo Estado ontem e anteontem, o próprio governo admitiu à ONU que não tem sistema de alerta, nem destinou recursos para transformar em realidade o acordo do qual é signatário. Para completar, o governo diz que o sistema de Defesa Civil do País está "despreparado". 2015 é o prazo máximo dado pela ONU para que os sistemas de prevenção e alerta sejam adotados. Se isso não ocorrer, a imagem diplomática do País fica manchada.

Ontem, ao saber que até o fim do governo Dilma Rousseff o Brasil pretende reduzir em 80% o número de vítimas de tragédias nas áreas cobertas pelo novo sistema e fazer cair pela metade o total de vítimas de desastres naturais, a consultora externa da ONU e diretora do Centro para a Pesquisa da Epidemiologia de Desastres, Debarati Guha-Sapir, disse que o prazo de quatro anos é "assustador, surpreendente e triste". "Não entendo a razão de um país levar quatro anos para ter um sistema de alerta em funcionamento", atacou. "O que a população deve questionar é por que não existia esse sistema antes ou pelo menos quem é que barrou o dinheiro que iria para esses projetos que existem em todo o mundo."

Para Guha-Sapir, o Brasil não pode esperar até 2015 para tomar medidas. "Se medidas concretas não forem tomadas hoje, mais gente poderá morrer. Essa tragédia está se transformando em uma grande vergonha e constrangimento para o governo brasileiro."

Ontem, na reunião, o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, falava da expectativa de já se começar a reduzir efeitos de desastres no próximo verão, mas o grosso do plano deverá estar pronto em quatro anos. Ao sair do encontro com Dilma, o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, resumiu: "A Defesa Civil tem muito o que reestruturar. O sistema tem se revelado frágil, é uma realidade. Ninguém vai tapar o sol com a peneira. Temos de encarar a realidade e reagir".

Ações. O plano da ONU prevê medidas concretas de prevenção, educação da população, campanhas de conscientização, proibição de obras públicas em locais de risco, padronização de alertas e dezenas de outras ações.

Segundo a especialista da ONU, a transformação da situação no Brasil vai depender do tamanho da tragédia. "É lamentável dizer, mas parece ser a realidade no Brasil. Nas primeiras horas do desastre, o governo achou que não precisaria se preocupar porque os afetados eram apenas favelas e gente pobre. Pouco a pouco, descobre que é toda uma região em apuros. O fato de que ainda há corpos sendo encontrados é um sinal muito ruim."

Em Teresópolis, Prefeitura briga com Igreja e Cruz Vermelha por doações. Decano da Diocese diz que situação é de boicote; prefeitura nega

O ESTADO DE S. PAULO, 17 de janeiro de 2011


De um lado, donativos que chegam às toneladas de todo o País; de outro, a falta de entrosamento entre a prefeitura de Teresópolis e organizações que tentam fazê-los chegar de modo mais eficiente a quem precisa, como a Cruz Vermelha e a Igreja Católica, cuja iniciativa, segundo voluntários, está sofrendo obstrução por parte do poder público. Até médicos foram impedidos de trabalhar. Enquanto isso, milhares de desabrigados ainda têm dificuldades para conseguir água, alimentos e artigos básicos para sua sobrevivência.

Hoje, voluntários da Cruz Vermelha relataram que funcionários da prefeitura tentaram impedir a saída de carregamentos do galpão montado pela organização internacional no centro da cidade. A prefeitura nega. "Está acontecendo uma briga de egos aqui em Teresópolis. A prefeitura determinou que nada pode ser entregue sem sua autorização", disse Jairo Gama, um dos cem voluntários da Cruz Vermelha em atividade na cidade.

Numa reunião entre as duas partes, a prefeitura decidiu que iria centralizar a entrega do material. A Cruz Vermelha, no entanto, acredita que tenha condições de fazer um trabalho mais direcionado, já que dispõe de informações precisas sobre as necessidades de cada localidade.

Apesar da intervenção da prefeitura, a Cruz Vermelha continuou fazendo entrega de material hoje - montou um ponto de distribuição em outro ponto da cidade. "O que a gente quer é evitar o desperdício. Por exemplo: não adianta entregar 30 quilos de arroz a uma pessoa de uma vez só", explicou Luiz Alberto Sampaio, presidente da Cruz Vermelha no Rio.

O prefeito de Teresópolis, Jorge Mário Sedlacek, negou que houvesse qualquer problema de entendimento. "Uma operação como esta precisa de um comando centralizado. Está todo mundo cooperando. Não temos dificuldade com ninguém", afirmou. Mas no domingo, segundo relatos de voluntários, até a polícia teria, a mando da prefeitura, tentado impedir a saída de um caminhão.

Mesmo médicos que estão em Teresópolis para prestar atendimento gratuito à população sofreram impedimento de sair da base da Cruz Vermelha por funcionários da prefeitura. Isso ocorreu hoje de manhã. À tarde, numa reunião, ficou definido que a Cruz Vermelha atuará no atendimento nas cinco localidades mais castigadas. Mas a princípio estaria impedida, oficialmente, de entregar donativos.

A prefeitura de Teresópolis está sendo acusada também de impedir a distribuição de donativos por parte da Igreja Católica. Segundo o padre Paulo Botas, integrantes da comunidade católica que foram até o estádio Pedrão ouviram de funcionários municipais que "nenhuma igreja católica de Teresópolis iria receber doações". A prefeitura desmente a informação - diz que a religião dos desabrigados não é fator levado em consideração.

"O prefeito é evangélico e não quer que a ajuda vá para os católicos", critica o padre, da igreja do Sagrado Coração de Jesus de Barra do Imbuí, área bastante afetada pelas chuvas. Ele contou que foi alugado um galpão na frente da igreja, para onde seriam levados roupas e alimentos que emissários recolheriam do montante estocado no Pedrão.

Sem querer entrar em detalhes sobre a religião do prefeito, o padre Mario José Coutinho, decano da Diocese de Petrópolis, disse que a situação é de boicote à Igreja Católica. "É surreal, uma ofensa, uma vergonha. Transformaram uma questão humanitária em religiosa". Nesta terça, antes de rezar uma missa de sétimo dia no Imbuí, o bispo de Petrópolis, dom Filippo Santoro, terá uma reunião com o prefeito para discutir o assunto.

Governo brasileiro admite à ONU despreparo em tragédias

ESTADÃO ONLINE, 15 de janeiro de 2011

Documento assinado pela secretária Nacional de Defesa Civil já previa ‘aumento de ocorrência de desastres’


O governo brasileiro admitiu à Organização das Nações Unidas (ONU) que grande parte do sistema de defesa civil do País vive um "despreparo" e que não tem condições sequer de verificar a eficiência de muitos dos serviços existentes. O Estado obteve um documento enviado em novembro de 2010 por Ivone Maria Valente, da Secretaria Nacional da Defesa Civil (Sedec), fazendo um raio X da implementação de um plano nacional de redução do impacto de desastres naturais. Suas conclusões mostram que a tragédia estava praticamente prevista pelas próprias autoridades.


Diante do tsunami que atingiu a Ásia e do aumento do número de desastres naturais no mundo nos últimos anos, a ONU foi pressionada a estabelecer um plano para ajudar governos a fortalecer seus sistemas de prevenção. Em 2005, governos chegaram a um acordo sobre a criação de um plano de redução de risco para permitir que, até 2015, o mundo estivesse melhor preparado para responder às catástrofes.

Uma das criações da ONU, nesse contexto, foi o Plano de Ação de Hyogo (local da conferência onde o acordo foi fechado). No tratado, a ONU faz suas recomendações de como governos devem atuar para resistir a chuvas, secas, terremotos e outros desastres. Ficou também estabelecido que os 168 governos envolvidos se comprometeriam a enviar a cada dois anos um raio X completo de como estavam seus países em termos de preparação para enfrentar calamidades e o que estavam fazendo para reduzir os riscos.

Na versão enviada pelo próprio governo do Brasil ao escritório da Estratégia Internacional das Nações Unidas para a Redução de Desastres, no fim de 2010, as constatações do relatório nacional são alarmantes. "A maioria dos órgãos que atuam em defesa civil está despreparada para o desempenho eficiente das atividades de prevenção e de preparação", afirma o documento em um trecho. Praticamente um a cada quatro municípios do País sequer tem um serviço de defesa civil e, onde existe, não há como medir se são eficientes.

"Em 2009, o número de órgãos municipais criados oficialmente no Brasil (para lidar com desastres) alcançou o porcentual de 77,36% dos municípios brasileiros, entretanto, não foi possível mensurar de forma confiável o indicador estabelecido como taxa de municípios preparados para prevenção e atendimento a desastres", diz o documento em outra parte.

Limitações. No relatório, o Brasil é obrigado a dar uma resposta ao desempenho em determinados indicadores sugeridos pela ONU. Em um dos indicadores - que trata de avaliação de risco de regiões - o governo admite ter feito avanços, "mas com limitações reconhecidas em aspectos chave, como recursos financeiros e capacidade operacional". Na avaliação de risco, por exemplo, o governo admite que não analisou a situação de nenhuma escola ou hospital no País para preparar o documento.

O próprio governo também aponta suas limitações em criar um sistema para monitorar e disseminar dados sobre vulnerabilidade no território. O governo também reconhece que a situação é cada vez mais delicada para a população. "A falta de planejamento da ocupação e/ou da utilização do espaço geográfico, desconsiderando as áreas de risco, somada à deficiência da fiscalização local, têm contribuído para aumentar a vulnerabilidade das comunidades locais urbanas e rurais, com um número crescente de perdas de vidas humanas e vultosos prejuízos econômicos e sociais", diz o documento assinado por Ivone Maria.

Consequência. "A não implementação do Programa (de redução de riscos) contribuirá para o aumento da ocorrência dos desastres naturais, antropogênicos e mistos e para o despreparo dos órgãos federais, estaduais e municipais responsáveis pela execução das ações preventivas de defesa civil, aumentando a insegurança das comunidades locais", afirmou o relatório.

O órgão também deixa claro que o Brasil estaria economizando recursos se a prioridade fosse a prevenção. "Quando não se priorizam as medidas preventivas, há um aumento significativo de gastos destinados à resposta aos desastres. O grande volume de recursos gastos com o atendimento da população atingida é muitas vezes maior do que seria necessário para a prevenção. Esses recursos poderiam ser destinados à implementação de projetos de grande impacto social, como criação de emprego e renda", conclui o documento.

Falta de coordenação prejudica resgate de vítimas e distribuição de donativos

O ESTADO DE S. PAULO, 17 de janeiro de 2011

No domingo, doações feitas para vítimas da tragédia na região serrana do Rio permaneciam a céu aberto e mal protegidas da chuva em Teresópolis


A falta de organização fez com que doações para vítimas da tragédia no Rio permanecessem, até a manhã de ontem, entulhadas a céu aberto e mal protegidas da chuva persistente em Teresópolis. Enquanto isso, várias aeronaves, incluindo cinco do Exército e outras comandadas pela Força Nacional, estavam paradas no campo da Granja Comary, transformado em base aérea das operações de resgate. Local de treinamentos da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o campo virou depósito de água, comida, material de higiene e roupas.

A Polícia Civil do Rio informou na manhã desta segunda-feira, 17, que 641 corpos já foram resgatados na região serrana do Rio. De acordo com o último relatório da instituição divulgado hoje, foram resgatados 217 corpos em Teresópolis, 292 em Nova Friburgo, 55 em Itaipava (distrito de Petrópolis), 19 em Sumidouro e 4 em São José do Vale do Rio Preto.

Helicópteros. Para justificar os helicópteros parados, autoridades do Exército culparam as péssimas condições meteorológicas. Mas helicópteros da Polícia Civil e do Corpo de Bombeiros voaram à vontade, ignorando a chuva que caiu ontem de manhã. Comandado pelo experiente piloto Adonis Oliveira, da tropa de elite da polícia, o Caveirão da Polícia Civil fez dois voos para levar mantimentos a pessoas isoladas em Santa Rita e Santana, resgatar idosos e transportar médico, enfermeiros e remédios.

No início da tarde, partiu para mais uma missão, carregado de comida, água, remédios e óleo diesel para geradores. Enquanto isso, das cinco aeronaves do Exército, duas só alçaram voo no início da tarde para levar um médico da polícia à Vila Salamaco e resgatar uma jovem doente mental.

Os próprios soldados comentavam na Granja Comary o absurdo de os helicópteros permanecerem parados. Segundo um deles, uma das aeronaves grandes estava havia dois dias sem voar, com toda a tripulação à disposição. Quem também reclamava muito era o engenheiro Antônio José Fusco, de 42 anos, morador da granja. "É inacreditável ver esses helicópteros parados quando há tanta coisa para carregar."

Sem acesso ao IML, famílias enterram corpos no quintal de casa na região serrana do RJ

FOLHA ONLINE, 17 de janeiro de 2011

Seis dias depois da chuva que devastou cidades da região serrana do Rio, moradores de áreas isoladas estão enterrando parentes e amigos no quintal de casa


É assim em Santa Rita, uma região de sítios em Teresópolis que, depois de sucessivos deslizamentos que derrubaram pontes e estradas, transformou-se em pedaços de terra ilhados.

Só é possível chegar à localidade de helicóptero ou através de trilhas pela mata, num percurso de oito horas ida e volta.

Com a impossibilidade de acesso do IML (Instituto Médico Legal) para recolher cadáveres, com a prioridade de resgatar pessoas com vida e com o estado avançado de decomposição, os corpos têm sido enterrados em covas rasas nas ruínas das casas.

"Enterrei meus quatro vizinhos no quintal. Já estavam lá desde terça, ninguém suportava mais o mau cheiro", diz o lavador de carros Edson Aquino, abrigado num estádio de Teresópolis.

"Quem não reconheceu os mortos deixou tudo para trás, por cima da terra. Em Santa Rita é só corpo e lama. Nunca pensei que tivesse de enterrar meus parentes em casa", afirma a doméstica Suzana da Silva Oliveira.

No IML de Teresópolis, parentes reclamam da demora na identificação dos corpos e da burocracia para liberá-los.

Na entrada do instituto médico, uma cartolina improvisada dá a orientação aos familiares em dez pontos.

Depois do reconhecimento do corpo, é preciso preencher um ficha, que deve ser entregue a um papiloscopista. O IML então emite um documento que deve ser levado à Defensoria pública, que por sua vez emite um alvará para liberação do cadáver.

De lá, o parente tem de ir ao subsolo entregar o alvará à funerária para remoção do corpo. E, se não puder pagar todo esse processo, é preciso voltar à recepção.
"É um desrespeito. Não se comovem com o nosso sofrimento. Perdi sete pessoas da família, imagina o vaivém para resolver toda essa papelada", diz a doméstica Maria Cinira das Dores.

Com muitos corpos em decomposição, o reconhecimento só é feito por imagens. Os cadáveres são retirados dos caminhões frigoríficos e fotografados no meio da rua. A necropsia também é feita na calçada.

Se não conseguir confirmar a identidade do morto por fotos, os parentes tiram sangue para fazer exames de DNA, depois comparados com amostras dos corpos.

"Preenchi a ficha duas vezes porque perdem os documentos. Prometeram liberar o enterro na sexta de manhã, mas até agora [sábado, 15], nada", disse o frentista Márcio dos Santos.

Houve tumulto e a confusão foi tanta que o juiz José Ricardo Aguiar, da 2ª Vara de Família, subiu no galpão anexo do IML para pedir calma aos familiares.

A assessoria da Prefeitura de Teresópolis não tem conhecimento sobre enterros de corpos em quintais. De acordo com o assessoria, a Justiça local buscará confirmar a informação quando a situação se acalmar.

Sítio de Tom Jobim some na lama, no Rio de Janeiro

ESTADÃO ONLINE, 15 de janeiro de 2011

Segundo filho de compositor, o teto da residência desabou e paredes ruíram com a forte tempestade que atingiu a região


À beira do Rio Preto, no sítio Poço Fundo, em que adorava passar férias sozinho, Tom Jobim fazia tudo virar música. Era a lama, o sapo, a rã, o caco de vidro, a luz da manhã e até um carro enguiçado do amigo João Gilberto, que visitava a toca do maestro em busca de arranjos para suas canções. Águas de Março foi o que de mais impressionante Jobim anotou ali em sua casinha, depois de uma temporada de verão com muita água caindo do céu na tranquila São José do Vale Rio Preto, a 40 minutos de Petrópolis, Rio. Desde as 8 horas da manhã de quarta-feira, a casa em que Jobim criou também Dindi e Matita Perê, segundo seu filho Paulo Jobim, não existe mais. O teto desabou, as paredes ruíram, muitas árvores se foram.

O refúgio de Jobim desapareceu em duas horas. Ali perto, no mesmo sítio, estava seu neto Daniel com a família. Ninguém ficou ferido. A 5 km de distância, porém, houve mortes e casas destruídas. Antes de bater em retirada com a família em uma aventura por estradas interditadas e em busca da gasolina que se tornou escassa nos postos de São José, Daniel correu até a casinha do avô para ver se restava algo. E viu o que não queria.

"Eu vi a casa cair. O teto desabou. A casa dos caseiros também foi destruída. Eu consegui sair com minha família de carro, mas as pessoas que moram lá só contam com elas mesmas. Não tem Defesa Civil, não tem nada. Dizem por lá que o Rio levou até os tratores que poderiam ajudar. Quase todas as pontes da região foram levadas pelas águas, saí por uma ponte em que só passava um carro por vez."

O volume de água que Daniel diz nunca ter visto antes em São José do Vale do Rio Preto, para ele, pode ser consequência da abertura de alguma barreira. "Não é possível, só a chuva não faria isso." Até a tarde de ontem, não havia como entrar em contato por telefone com a Defesa Civil da região. Paulo Jobim, filho de Tom e pai de Daniel, tem outra opinião. "Foi assim também em Teresópolis e outras regiões do Rio. Para mim, as comportas que foram abertas foram as comportas do céu."

O neto Daniel vê as músicas do avô como "proféticas". "Ele tinha mesmo esse mistério", diz. Jobim mostrava em entrevistas preocupação com o desmatamento antes mesmo das discussões sobre a camada de ozônio. Águas de Março, feita ali na casa destruída por uma impiedosa enxurrada de janeiro, soa agora como uma previsão. "É pau, é pedra, é o fim do caminho / É um resto de toco/ é um pouco sozinho." Outra a sair das inspirações à beira do Rio Preto foi Dindi. "Céu, tão grande é o céu / E bandos de nuvens que passam ligeiras / Pra onde elas vão, ah, eu não sei, não sei / E o vento que toca nas folhas / Contando as histórias que são de ninguém / Mas que são minhas e de você também / Ai, Dindi."


"Duas casas serão reconstruídas", diz neto de Tom Jobim
IG, 16 de janeiro de 2011

A casa onde o compositor Tom Jobim escreveu uma de suas mais famosas músicas, Águas de Março, localizada perto do município de São José do Vale do Rio Preto, na região serrana do Rio, foi destruída pelo rio formado pelas intensas chuvas.

No momento da chuva forte, Daniel Jobim, neto do compositor, estava no sítio da família. "Quando tudo aconteceu, já estávamos preparados e ficamos em alerta e, felizmente, apenas duas casas precisarão ser reconstruídas", diz.

Paulo Jobim, filho do compositor e pai de Daniel, conta que foi de uma das casas destruídas, que ficava na beira do rio, que saíram os versos "É pau, é pedra, é o fim do caminho".

O diário de um sobrevivente

ESTADÃO ONLINE, 16 de janeiro de 2011


O universitário Emanoel Pavani Torres, de 30 anos, que estava na casa dos pais, em Teresópolis, na madrugada de terça-feira, registrou todos os instantes da catástrofe que atingiu a cidade desde a hora em que foi acordado, no meio da noite, até quando socorreu o caseiro e conseguiu levá-lo para o Rio. A casa dos pais dele está irreconhecível. Piscina, lago e rio viraram um mar de lama. Após deixar o caseiro, Emanoel voltou à serra com alimentos não perecíveis para ajudar no resgate das vítimas. "Tem muita gente, mas muita gente mesmo precisando de socorro em Teresópolis."

"Acordei com um barulho muito forte de temporal e vento nas janelas. Fui até a sala, vi água no chão e olhei para o teto achando que fosse goteira. A semana anterior tinha sido úmida, de chuva intermitente. Mas, agora, o quadro era diferente: do lado de fora da casa, uma árvore caída represou a água e fez seu nível subir até cerca de um metro na porta de vidro que separa a sala da varanda.

Dei a volta pelos fundos, para tentar sair e ver a situação do jardim na frente da casa. O riacho que passa pelo terreno havia transbordado, a rua estava completamente submersa e a piscina e o lago viraram uma coisa só. Então, percebi que estava ilhado.

Já não tinha como chegar até o caseiro, a casa dele fica mais perto da rua. Ele também não conseguiria vir até a casa maior.

Escalei a chaminé da lareira para subir no telhado e de lá chegar até a caixa d"água, numa tentativa de avaliar na escuridão até onde ia o estrago.

Ouvi um forte barulho, percebi que a casa do caseiro estava desmoronando. Já era uma segunda avalanche de terra. A terceira derrubou uma parede da casa maior e empurrou os móveis na direção da piscina. Tive a impressão de que a construção não resistiria.

Sem celular, apenas com uma bermuda e a carteira, esperei lá em cima até o dia amanhecer para saber que rumo tomar.

O carro e a moto estavam perdidos, cobertos por uma montanha de lama. O galinheiro desapareceu, os marrecos, os patos, o cachorro, nunca mais os vi. O terreno da casa, de 3 mil m2, fica em um vale onde vivia uma comunidade muito carente, dizimada com os deslizamentos. Calculo que 90% daquela população morreu ou está desaparecida. Os sucessivos desmoronamentos traziam não só terra, mas pedras gigantescas, troncos, partes das casas, e corpos. Um deles, de uma criança, foi parar no jardim de casa. A essa altura, meu desespero já tinha virado resignação: achei que ia morrer e aceitei isso.

Mais tranquilo, desci da caixa d"água e caminhei pelos montes de terra até o lugar onde passava a estrada. Gritei para ver se fazia contato com algum vizinho. Alcancei uma casa próxima, onde havia 17 pessoas - senhoras, adolescentes e crianças, a maior parte desesperada. As crianças menos. Pareciam excitadas com a "aventura", sem se darem conta da dimensão da catástrofe. Fiquei um pouco com eles, até conseguir retirá-los dali e encaminhá-los a um condomínio grande que não fora atingido. Montamos ali um posto de atendimento informal aos sobreviventes, que apareciam enlameados, em número cada vez maior, e fornecemos água potável.

A partir daí, como a defesa civil demorou um tempo para chegar, passei o resto da manhã e parte da tarde ajudando no resgate das pessoas. Essa foi a parte mais dolorosa. Apesar de ter feito um curso de primeiros socorros, confesso que agi por instinto, sem pensar, simplesmente fazendo o que conseguia, para não fraquejar.

Encontrei o caseiro enlameado até os cabelos e o levei até o condomínio para que pudesse tomar água e comer alguma coisa.

As vítimas eram transportadas em macas feitas de bambu e cobertor para o campo de futebol da região, que funcionou também como heliponto. O helicóptero da Globo eventualmente levava alguém, mas, como era pequeno, não cabia mais de uma pessoa por vez. Era preciso escolher quem embarcaria, no meio daquele campo de agonizantes. Foi muito ruim. Muitos dos que ficavam morriam na nossas mãos. Uma menina grávida mudou de cor aos poucos, foi amolecendo, e morreu. Outra eu carreguei por quase 1 km, até o local mais próximo onde pudessem atendê-la.

Vi muitos corpos inchados, ou aos pedaços, largados na estrada ou escorados em árvores, crianças pedindo socorro aos prantos. Não pensei que fosse viver para ver algo assim.

Lembrei que precisava me alimentar para poder continuar. Estava completamente sem energia, exausto, com os pés cheios de feridas.

Fui até o condomínio para buscar o caseiro e, como precisávamos tomar antitetânica, pegamos carona com uma picape do Corpo de Bombeiros até o hospital. Dali, caminhamos até a rodoviária, que fica perto, e pegamos um ônibus para o Rio. Passei o dia juntando mantimentos não perecíveis para levar aos sobreviventes. Voltarei amanhã para retomar o resgate."

Chuva em Nova Friburgo: soterrado com a família, ele viu a mulher e os filhos morrerem

EXTRA, 17 de janeiro de 2011


Primeiro, desabou a casa do aposentado Cláudio Pereira Coelho, de 40 anos, arrastada pelos deslizamentos da última quarta-feira. Nas oito horas seguintes, foi seu mundo que veio abaixo. Após todo o tempo em que ficou soterrado com os dois filhos adolescentes, a mulher, e uma sobrinha, só Cláudio sobreviveu. Mas, como tudo no drama de proporções grandiosas que afeta a Região Serrana do Rio — até a noite de ontem, eram 634 mortos —, o destino lhe tirou os familiares com uma dose brutal de crueldade. No dia a dia, o casal Cláudio e Adriana era acostumado a conversar com os filhos à mesa de jantar. Mas o diálogo mais forte dessa família, nascida em Nova Friburgo de um amor fulminante na infância, ocorreu sob os escombros e a lama. “Papai, não me deixa morrer; me salva”, dizia Aleff Cirino Coelho, de 14 anos, que deitou a cabeça sobre o braço esquerdo do pai. “Calma, filho, eu vou gritar socorro; eu vou pedir para tirar você primeiro e depois eu”, disse Cláudio ao filho. No depoimento abaixo, dado ao repórter Antero Gomes, Cláudio conta como parte de sua vida ficou sob os escombros.

Quando ele (Aleff) tinha 10 meses e ainda não sabia andar, eu fui hospitalizado, por causa de um acidente de moto. Quando eu voltei do hospital, ele tinha 2 anos e já sabia andar. Nossa, não esqueço.

Não enterrei ninguém ainda. Eu estava machucado e no abrigo. Os três foram enterrados como indigentes. Não sei nem o cemitério, nem a cova. Minha sobrinha continua soterrada lá embaixo. Ou o rio levou. Dizem que, ali onde eu moro, 50 pessoas morreram. Algumas continuam lá. Os moradores é que estão procurando.

Não consegui avisar ainda minha sogra, nem meu sogro. Nem sei se eles estão vivos. Os dois moram em Conselheiro Paulino. Se estiverem vivos, não sabem que a filha morreu. Como as coisas estão por lá? Não sei de notícias de nada. Você me levaria para avisá-los?

Sinceramente, não sei como reconstruir minha vida. Meu mundo desabou. Nem documentos eu tenho mais. Perdi casa, carro, tudo. Mas isso não é nada. Família, sim, é tudo. Sabe, conheci minha mulher no dia do aniversário de 14 anos dela, numa festa de uma amiga da minha prima. Foi num sábado, lá em Conselheiro Paulino, distrito de Nova Friburgo. Eu não sou de Nova Friburgo, não. Vim aqui para trabalhar há 29 anos. Hoje, tenho 40. Sou de São Fidélis (Norte Fluminense). Quando vi a Adriana, foi amor à primeira vista. A gente namorou um ano, noivou e casou mais um ano depois.

Até as fotos do casamento estão perdidas. Tínhamos um álbum por revelar, mas ele também se foi. Do meu filho, só tenho uma foto de quando ele era pequeno. Não tenho foto recente para me lembrar dele. Agora, minha família é meu pai e minha mãe. Vou morar com eles. Mas meu mundo desabou. Estou sem orientação. Tenho uma aposentadoria e mais nada. Nem com a roupa do corpo eu saí. Quando sai da casa, estava só de cueca. Só tenho agora esta bermuda, esta camisa e este tênis. Este é o meu patrimônio. Por isso, estou evitando sujar a bermuda de lama. Não quero ficar sujo.

Minha mulher, o que dizer? Ela era extraordinária. Ela saía de casa às 6h10m para ir trabalhar e voltava no final da tarde. Dava o dinheiro do mês para eu administrar. Assim, a gente foi construindo essa casa. Pagando aos poucos a parentes que a construíram.

Meus filhos era ótimos. A menina estava fazendo curso técnico em informática. Meu filho queria ser garçom. No entanto, eu dizia para ele: “Ser garçom é bom, mas tem coisa melhor”. Eu queria que ele fizesse um curso este ano de petróleo e gás, que abriu aqui em Nova Friburgo.

Vim para este abrigo (um laboratório em Prainha, invadido por 120 desabrigados), está todo mundo ajudando e eu também. Ontem, eu estava limpando as escadas, mas fiquei muito estressado. Hoje, eu estou lá no almoxarifado. Está muito dolorido, mas tenhp que ajudar. Ainda estou com dor perna. Machuquei o fêmur. À noite, eu fico tendo pesadelos. A todo momento, eu ouço a voz do meu filho pedindo: “Papai, me salva, não deixa eu morrer”.

Teve um momento, debaixo dos escombros, em que eu conversei com Deus. Eu disse: “Deus, me perdoe pelos meus pecados, mas eu quero viver. Eu quero viver. Mas também deixa o meu filho viver. Porque, pelo menos, tem eu e ele para darmos continuidade à vida”. Não sei, mas se não tivesse tanta barreira na estrada (no dia da tragédia), acho que ele tinha chegado ao hospital e estaria vivo. Desabou tudo. Acabou tudo.

Quando desceu a primeira barreira, eu estava na sala com meus dois filhos, de 14 e 16 anos, minha esposa e minha sobrinha, de 12. Eram 2h40m da madrugada. Lembro bem de tudo. Morava no segundo andar de uma casa de três andares no bairro Prainha e ouvi o povo gritando “socorro, socorro”. Fui até a porta da entrada com o meu filho de 14 anos (Aleff Cirino Coelho). O barranco tinha levado a escada de saída. Sou deficiente de uma perna, mas pensei: vou pular da janela em cima da garagem. Não deu tempo. Um segundo barranco derrubou a casa com a gente dentro. Morreu todo mundo.

O corpo da minha sobrinha ainda está desaparecido. Fiquei soterrado por quase oito horas. Como as minhas mãos estavam soltas, ficava tentando tirar a água e a lama do rosto do meu filho. A cabeça dele caiu sobre meu braço esquerdo, estava com sangue na boca e no nariz. Desde que fiquei aleijado, num acidente de moto, ele virou meu melhor amigo. Sempre que eu precisava ir a algum lugar e de alguém para me equilibrar, ele largava tudo. Amigos, brincadeiras... e pedia para me acompanhar.

A primeira a morrer foi minha filha (Franciele). Ela ficou abraçada à minha esposa (Adriana Baloneq Cirino), que caiu com as pernas sobre a minha barriga. Minha sobrinha? Eu não sei onde foi parar. Uns 20 minutos antes de minha mulher morrer, ela disse: “Cláudio, não estou aguentando o peso, eu vou morrer”. Eu disse: “Calma. Onde está a Franciele?” Minha esposa respondeu: “Está aqui abraçada comigo”. Perguntei: “Ela está viva?”. “Não, Cláudio. Ela está morta”. Nesta hora, o meu mundo acabou. E meu filho quase morrendo ali.

Minha esposa estava conversando comigo, mas depois balançou as pernas e morreu. Só aguentou uns 40 minutos. Mas ainda tinha o meu filho, que era tudo para mim. Tudo.

O que eu não consigo esquecer mesmo é dele implorando, sussurrando: “Papai, papai, não me deixa morrer, me salva”. É duro ver um filho morrendo nos seus braços... Quando o socorro chegou, pedi: “Salva meu filho primeiro, estou bem”. Mas eles gritaram que tinham que me tirar primeiro.

Fui para um hospital e, de lá, para um abrigo. Minha mãe disse que tiraram o Aleff com vida, mas estava com o peito todo quebrado e desmaiou. Colocaram ele num carro e o levaram para o hospital. Tinha muita barreira e, quase na chegada, ele morreu.