Roberto Romano é professor da Unicamp e um intelectual atuante, uma voz crítica sempre participante do debate sobre a queda moral que se abate sobre a política brasileira, na qual ele vê raízes históricas que precisam ser ultrapassadas. Leia abaixo sua entrevista publicada hoje no jornal O Estado de S. Paulo
Roldão Arruda
O filósofo Roberto Romano diz que o foro privilegiado concedido aos políticos é uma licença para a delinquência
O sentimento de impunidade que alguns políticos brasileiros exibem, sustentando-se nos cargos mesmo debaixo de denúncias de desmandos, nepotismo e abuso de poder, é comparável ao dos nobres no período absolutista - considerado o mais corrupto da história moderna. Essa é a opinião do filósofo Roberto Romano, professor titular de Ética e Filosofia Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Na entrevista abaixo, ele afirma que "até os garotos dessas dinastias políticas que se formam no Brasil têm certeza que o papai e o vovô não serão punidos".
Como explicar a permanência do presidente do Senado no cargo, após todas as denúncias contra ele e sua família, sem se sentir envergonhado e sem que a sociedade demonstre indignação? Na Inglaterra, um escândalo semelhante causou a queda de ministros e pedidos de desculpas.
Acho que vivemos numa sociedade com uma ética profundamente distorcida. Isso tem raízes históricas e raízes sociais propriamente brasileiras. Raízes históricas porque surgimos para a vida, enquanto gente, no período absolutista - um período de superconcentração de poderes na mão do rei; e da necessária bajulação do rei para se conseguir alguma coisa em termos de recursos, de glórias, etc. O nosso parâmetro original, portanto, já é o parâmetro do período absolutista, o mais corrupto da história moderna. Quando veio para o Brasil, d. João VI veio para evitar aquela "desgraça" da revolução puritana inglesa e das revoluções francesas e norte-americana. Veio estabelecer um Estado absolutista fora de tempo, anacrônico, ao qual o senhor seu filho, d. Pedro I, deu continuidade.
Mas depois veio a República.No início da República tivemos um ensaio de liberalismo, uma tentativa de estabelecer um Estado minimamente democrático. Mas fracassou. Os costumes já estavam enraizados na ordem pública. Verifica-se então o retorno à prática antiga, dando-se ao presidente da República quase que as prerrogativas do imperador.
Vem daí a ética distorcida??Ética é o conjunto de valores - ou de contravalores - que, de tão repetidos, se tornam automáticos, praticados até de forma inconsciente. E qual é a nossa memória? Ela é antiliberal, antidemocrática, não republicana. Quem está na escala hierárquica do poder não se julga obrigado a prestar contas a ninguém, como no sistema absolutista.
Quer dizer que, embora as pessoas digam que os políticos não têm ética, eles têm?Eles têm essa ética aí, que estamos vendo. Com a centralização do poder e a falta de autonomia dos municípios e Estados, os políticos brasileiros atuam como mediadores com os donos do poder. Se um senador ou um deputado federal não traz obras para os município, ele não consegue se reeleger na sua base. Existe, portanto, um conúbio, uma cumplicidade, inconsciente muitas vezes, em que o eleitor colabora com o seu voto para o "é dando que se recebe", nesse sistema distorcido, sem federação e sem república. Para ter recursos, o político faz concessões e chantageia o Executivo. E ele ainda julga que faz um favor quando consegue uma creche.
Ele é um despachante de luxo?Ele não se assume, de acordo com os preceitos do Estado Democrático de Direito, como fiscalizador e legislador. Veja a batalha que está ocorrendo no Congresso norte-americano, em torno da nomeação de Sonia Sotomayor para a Suprema Corte. O presidente tem maioria, mas a minoria questiona sem parar e a mulher se defende, luta pelo cargo. Compare com as audiências no Senado brasileiro para as nomeações de juízes do STF. Quando é mulher, a coisa chega ao nível do deboche. Elogiaram o vestido da Ellen Gracie, o penteado, a beleza. O discurso de um Wellington Salgado no Senado é de causar vergonha.
Dentro dessa ótica, como analisa a conversa debochada entre o neto de José Sarney e o pai, a respeito do seu emprego no gabinete do senador Epitácio Cafeteira?É típico do Estado absolutista, em que os nobres se julgam acima das leis. Chamou minha atenção o que disseram do Cafeteira, que só faltou servir café para o menino. Ele não se mostrou um senador republicano, e sim um serviçal do clã.
O comportamento de políticos como Sarney é baseado no fato de se sentirem acima das leis?Sim. Tudo piorou com o privilégio de foro (que permite permite aos políticos serem denunciados pelo procurador-geral da República e processados pelo Supremo). Privilégio de foro, numa República, é a mesma coisa que dar licença para a delinquência. Essas pessoas se julgam - e são efetivamente - impunes, inimputáveis. É piada dizer que o STF pode julgá-las. Até os garotos dessas dinastias políticas que se formam no Brasil têm certeza que o papai e o vovô não serão punidos.
Por que a sociedade não reage?Entre outras coisas porque não temos partidos políticos democráticos e liberais no Brasil. Hoje o que predominam são federações de oligarquias. O DEM e o PMDB são duas grandes federações oligárquicas. Existe um PMDB no Rio Grande do Sul, outro no Rio de Janeiro, outro no Pará, outro no Maranhão... Os partidos são propriedades dessas federações, que não são democráticas, não realizam primárias, não fazem consultas para a modificação de programas, nem para a definição de candidatos. Nada mais igual aos partidos brasileiros do que os clubes de futebol: são os mesmos quadros dirigentes que estão lá há 50 anos, que controlam o caixa e o técnico, contratam jogadores, negociam. A torcida nunca é consultada.
Já tivemos a sociedade mobilizada, na época da ditadura.A sociedade vive espasmos ciclotímicos. Numa hora todo mundo corre pelas Diretas Já, outra hora pelo impeachment do Collor e, na outra hora, fica no desânimo absoluto, como se estivéssemos condenados a esse destino da corrupção. É uma sociedade inoculada pelo vírus do absolutismo, do catolicismo conservador e da ausência de partidos políticos.
O senhor parece pessimista.Existem coisas que, pela força do mercado, da urbanização, do avanço dos meios de comunicação, estão mudando, permitindo uma visão clara sobre o anacronismo entre a vida dos políticos e a vida real. As pessoas leem e ouvem os diálogos que vocês puseram na internet. Há uma consciência mais aguda.
Mas não suficiente?Faça um levantamento de quantas ONGs existem na classe média e das que recebem recursos públicos. Vai entender porque as pessoas não vão às ruas. Ficaram realistas. E não há nada pior na democracia do que o realista, o sujeito que silencia diante das piores coisas da vida pública, com esperança de ter verba. Também considero alarmante e inaceitável o chefe de Estado, o presidente dizer que é preciso cuidado com a biografia de uma pessoa e de uma família com as características que vocês mostram, que a PF mostra.
QUEM É
Roberto RomanoProfessor titular de Ética e Filosofia Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp
Doutorado em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, e pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas
É autor de vários livros, entre os quais O Caldeirão de Medeia