CORREIO BRAZILIENSE, 24 de janeiro de 2011
O Correio procurou moradores do Complexo do Alemão que denunciaram à polícia abusos cometidos por autoridades durante a operação. Dois meses depois, ninguém recebeu retorno. Ficou a esperança de dias melhores
Quase dois meses após a ocupação da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, favelas na Zona Norte do Rio dominadas por décadas pelos traficantes de drogas, moradores que tiveram coragem de formalizar denúncias de abusos praticados pelas autoridades policiais não receberam qualquer resposta do Estado. O Correio retornou às casas de pessoas entrevistadas à época da ação das forças de segurança no local para saber a situação em que estão vivendo.
O pastor Ronai de Almeida Lima Braga Junior, que denunciou o furto de R$ 31,5 mil de sua residência por policiais, não foi procurado pela delegacia onde registrou a queixa, no dia do fato, 26 de novembro, até hoje. Representante de venda de malharias que também pinta camisetas como bico, ele consertou a parede que foi arrombada pelos agentes, segundo testemunharam os vizinhos na delegacia, mas não consegue fazer o filho esquecer do estrago deixado na casa. “Foi o pow, pow, pow”, diz Nathan, o caçula de Ronai, com o dedo em riste, imitando policiais atirando.
A solidariedade foi o único lado bom de toda essa história, segundo Ronai. “Aqui na comunidade da Vila Cruzeiro, as pessoas me param, desejam boa sorte”, diz o pastor. Com duas cartelas de papel na mão, Ronai mostra os bilhetes de uma rifa, organizada por uma entidades sem fins lucrativos, que ele está vendendo. “Uma ONG (organização não governamental) soube do que aconteceu com a gente, me procurou e promoveu essa rifa. Já vendi umas 25 cotas. Tem muito mais aqui”, mostra as cartelas, onde, além do nome da ONG, há a frase: Para realizar o meu sonho da casa própria.
A expressão foi cunhada porque, segundo conta Ronai, o dinheiro que ele diz ter sido furtado seria usado para comprar uma apartamento. No dia do fato, ele iria fechar o negócio. “Depois de quase ver meu sonho acabar, consegui pegar a carta de crédito no banco, só que tive de retirar no valor quase todo do imóvel, R$ 65 mil. Antes, ia tirar só metade. Mas tudo bem, tenho confiança de que, um dia, a gente vai recuperar o que foi levado. O que importa é que vou conseguir criar meus filhos fora da favela”, afirma.
Ele aponta situação pior de outros moradores que tiveram parentes mortos durante a ocupação policial. “Dia desses, nosso gás acabou, a gente pediu e um garoto veio trazer. Ele sabia da minha história e disse que sentia muito. Aí contou que a menina de 14 anos que morreu com uma bala perdida em frente ao computador durante a ocupação era irmã dele. Pôxa, a minha perda perto da dele não é nada”, destaca.
Ronai diz achar engraçado ao ler, na internet, comentários sobre o ocorrido, depois que o Correio divulgou um vídeo com seu depoimento. “As pessoas veem um negão dizendo que tinha R$ 31 mil em casa e acham que é dinheiro de tráfico. Quem não conhece a favela pensa que a gente mora no meio da lama, que passa rato dentro da nossa casa, que eu não tenho um computador, uma televisão legal”, diz o pastor, que em todas as entrevistas para outros jornais, depois do primeiro depoimento, faz questão de mostrar sua rescisão de contrato de trabalho, depois de oito anos de carteira assinada, e as últimas declarações de imposto de renda.
Chave na vizinha
Para Cosme Souza dos Santos, que registrou ocorrência de arrombamento e desaparecimento de objetos de sua esposa, Sandra, o retorno da delegacia também não chegou. Morador da Rua Rainha, uma viela estreita na Vila Cruzeiro, Cosme estava voltando do trabalho, como porteiro em um prédio do centro da cidade, quando encontrou o portão arrebentado. Vizinhos que foram à delegacia testemunhar o fato disseram que policiais detonaram a porta. Para evitar novas surpresas, Cosme afixou e ainda mantém um bilhete na porta de casa.
Além de dizer que ali moram duas pessoas que trabalham fora, o recado dirigido à polícia avisa que a chave, caso queiram revistar a casa, está com a vizinha. Sandra teve anéis, brincos e um relógio furtado. A mulher, visivelmente temerosa de falar com a imprensa, contou que, na delegacia, a única resposta foi que esperassem até março. “Disseram que, como era fim de ano, a gente tinha que aguardar. A gente sabe que não vai dar em nada, é muito triste viver assim”, diz Sandra.
Força destaca os afastamentos - A Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar, ambas do Rio de Janeiro, foram procuradas insistentemente pela reportagem, na última sexta-feira, para falar sobre as providências tomadas nos casos de denúncias registradas durante a ocupação policial. Porém o relações públicas da PM, coronel Henrique Lima Castro, afirmou que, por ser ponto facultativo no estado, não havia como repassar qualquer informação. Apesar da falta de retorno dos órgãos, a Força de Pacificação, que atualmente garante a ordem na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, informou que 52 militares estão afastados por terem sido acusados de furto no Complexo do Alemão.
O crime, segundo homens do próprio Exército que denunciaram um tenente por levar um aparelho de ar-condicionado e outros objetos de uma casa, teria ocorrido em 3 de janeiro. O major Fabiano Lima de Carvalho, da Comunicação Social do Exército, explica que, apesar de as acusações recaírem apenas sobre esse militar, os comandados do pelotão dele também foram afastados. “As pessoas serão ouvidas nessa apuração inicial. Confirmando-se os indícios de crimes, instauramos um inquérito policial militar e prosseguimos com o processo”, explica. A Polícia Militar, ainda segundo Lima de Carvalho, afastou 23 policiais que também atuavam na área, conhecida como favela da Fazendinha.
Além desses casos recentes, ocorridos depois que a Força de Pacificação se instalou nos morros, em 23 de dezembro, denúncias anteriores da época da ocupação somaram pelo menos 26 procedimentos de apuração, abertos pela Corregedoria Unificada, envolvendo 42 PMs e oito policiais civis. O problema, segundo manifestação da Secretaria de Segurança Pública do Rio, em outras ocasiões, é a falta de provas e de identificação dos suspeitos, uma vez que, na maioria dos casos de furto, os moradores estavam fora e só podem contar com testemunhos dos vizinhos. Raras são as denúncias em que as vítimas conseguiram registrar algo mais contundente contra os policiais.
Um desses casos, acompanhado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, foi o de uma mulher agredida dentro de casa que conseguiu verificar a inscrição na farda do policial. Ela desceu imediatamente no ônibus que o órgão manteve no pé do Alemão de 30 de novembro a 10 de dezembro e fez a denúncia. “Ligamos na Corregedoria Unificada das Polícias Civil e Militar e identificamos o agente. Um procedimento administrativo e criminal foi aberto”, conta Darcy Burlandi, defensora pública. Uma denúncia coletiva com relatos de depredação do patrimônio, roubo, furto, agressão, tortura com choque e até execução sumária foi encaminhada há cerca de um mês, por oito entidades ligadas aos direitos humanos, à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA). Todas referem-se ao período da ocupação policial nas favelas. Os órgãos ainda não se manifestaram. (RM)
Bunker do crime
A ocupação da Vila Cruzeiro foi a primeira investida do governo na estratégia de retomada de favelas da Zona Norte do Rio. Quatro dias depois, as forças de segurança tomaram também o Complexo do Alemão. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Rio de janeiro, a Vila Cruzeiro era uma espécie de “bunker” de traficantes que recebiam ordens de criminosos de presídios e repassavam para outras comunidades. A estimativa era de que cerca de 400 criminosos atuavam na área. A ocupação contou com carros blindados da Marinha, que transportaram os policiais até o alto da favela. Existe a expectativa de que uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) seja instalada no local.
O Correio procurou moradores do Complexo do Alemão que denunciaram à polícia abusos cometidos por autoridades durante a operação. Dois meses depois, ninguém recebeu retorno. Ficou a esperança de dias melhores
Quase dois meses após a ocupação da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, favelas na Zona Norte do Rio dominadas por décadas pelos traficantes de drogas, moradores que tiveram coragem de formalizar denúncias de abusos praticados pelas autoridades policiais não receberam qualquer resposta do Estado. O Correio retornou às casas de pessoas entrevistadas à época da ação das forças de segurança no local para saber a situação em que estão vivendo.
O pastor Ronai de Almeida Lima Braga Junior, que denunciou o furto de R$ 31,5 mil de sua residência por policiais, não foi procurado pela delegacia onde registrou a queixa, no dia do fato, 26 de novembro, até hoje. Representante de venda de malharias que também pinta camisetas como bico, ele consertou a parede que foi arrombada pelos agentes, segundo testemunharam os vizinhos na delegacia, mas não consegue fazer o filho esquecer do estrago deixado na casa. “Foi o pow, pow, pow”, diz Nathan, o caçula de Ronai, com o dedo em riste, imitando policiais atirando.
A solidariedade foi o único lado bom de toda essa história, segundo Ronai. “Aqui na comunidade da Vila Cruzeiro, as pessoas me param, desejam boa sorte”, diz o pastor. Com duas cartelas de papel na mão, Ronai mostra os bilhetes de uma rifa, organizada por uma entidades sem fins lucrativos, que ele está vendendo. “Uma ONG (organização não governamental) soube do que aconteceu com a gente, me procurou e promoveu essa rifa. Já vendi umas 25 cotas. Tem muito mais aqui”, mostra as cartelas, onde, além do nome da ONG, há a frase: Para realizar o meu sonho da casa própria.
A expressão foi cunhada porque, segundo conta Ronai, o dinheiro que ele diz ter sido furtado seria usado para comprar uma apartamento. No dia do fato, ele iria fechar o negócio. “Depois de quase ver meu sonho acabar, consegui pegar a carta de crédito no banco, só que tive de retirar no valor quase todo do imóvel, R$ 65 mil. Antes, ia tirar só metade. Mas tudo bem, tenho confiança de que, um dia, a gente vai recuperar o que foi levado. O que importa é que vou conseguir criar meus filhos fora da favela”, afirma.
Ele aponta situação pior de outros moradores que tiveram parentes mortos durante a ocupação policial. “Dia desses, nosso gás acabou, a gente pediu e um garoto veio trazer. Ele sabia da minha história e disse que sentia muito. Aí contou que a menina de 14 anos que morreu com uma bala perdida em frente ao computador durante a ocupação era irmã dele. Pôxa, a minha perda perto da dele não é nada”, destaca.
Ronai diz achar engraçado ao ler, na internet, comentários sobre o ocorrido, depois que o Correio divulgou um vídeo com seu depoimento. “As pessoas veem um negão dizendo que tinha R$ 31 mil em casa e acham que é dinheiro de tráfico. Quem não conhece a favela pensa que a gente mora no meio da lama, que passa rato dentro da nossa casa, que eu não tenho um computador, uma televisão legal”, diz o pastor, que em todas as entrevistas para outros jornais, depois do primeiro depoimento, faz questão de mostrar sua rescisão de contrato de trabalho, depois de oito anos de carteira assinada, e as últimas declarações de imposto de renda.
Chave na vizinha
Para Cosme Souza dos Santos, que registrou ocorrência de arrombamento e desaparecimento de objetos de sua esposa, Sandra, o retorno da delegacia também não chegou. Morador da Rua Rainha, uma viela estreita na Vila Cruzeiro, Cosme estava voltando do trabalho, como porteiro em um prédio do centro da cidade, quando encontrou o portão arrebentado. Vizinhos que foram à delegacia testemunhar o fato disseram que policiais detonaram a porta. Para evitar novas surpresas, Cosme afixou e ainda mantém um bilhete na porta de casa.
Além de dizer que ali moram duas pessoas que trabalham fora, o recado dirigido à polícia avisa que a chave, caso queiram revistar a casa, está com a vizinha. Sandra teve anéis, brincos e um relógio furtado. A mulher, visivelmente temerosa de falar com a imprensa, contou que, na delegacia, a única resposta foi que esperassem até março. “Disseram que, como era fim de ano, a gente tinha que aguardar. A gente sabe que não vai dar em nada, é muito triste viver assim”, diz Sandra.
Força destaca os afastamentos - A Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar, ambas do Rio de Janeiro, foram procuradas insistentemente pela reportagem, na última sexta-feira, para falar sobre as providências tomadas nos casos de denúncias registradas durante a ocupação policial. Porém o relações públicas da PM, coronel Henrique Lima Castro, afirmou que, por ser ponto facultativo no estado, não havia como repassar qualquer informação. Apesar da falta de retorno dos órgãos, a Força de Pacificação, que atualmente garante a ordem na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, informou que 52 militares estão afastados por terem sido acusados de furto no Complexo do Alemão.
O crime, segundo homens do próprio Exército que denunciaram um tenente por levar um aparelho de ar-condicionado e outros objetos de uma casa, teria ocorrido em 3 de janeiro. O major Fabiano Lima de Carvalho, da Comunicação Social do Exército, explica que, apesar de as acusações recaírem apenas sobre esse militar, os comandados do pelotão dele também foram afastados. “As pessoas serão ouvidas nessa apuração inicial. Confirmando-se os indícios de crimes, instauramos um inquérito policial militar e prosseguimos com o processo”, explica. A Polícia Militar, ainda segundo Lima de Carvalho, afastou 23 policiais que também atuavam na área, conhecida como favela da Fazendinha.
Além desses casos recentes, ocorridos depois que a Força de Pacificação se instalou nos morros, em 23 de dezembro, denúncias anteriores da época da ocupação somaram pelo menos 26 procedimentos de apuração, abertos pela Corregedoria Unificada, envolvendo 42 PMs e oito policiais civis. O problema, segundo manifestação da Secretaria de Segurança Pública do Rio, em outras ocasiões, é a falta de provas e de identificação dos suspeitos, uma vez que, na maioria dos casos de furto, os moradores estavam fora e só podem contar com testemunhos dos vizinhos. Raras são as denúncias em que as vítimas conseguiram registrar algo mais contundente contra os policiais.
Um desses casos, acompanhado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, foi o de uma mulher agredida dentro de casa que conseguiu verificar a inscrição na farda do policial. Ela desceu imediatamente no ônibus que o órgão manteve no pé do Alemão de 30 de novembro a 10 de dezembro e fez a denúncia. “Ligamos na Corregedoria Unificada das Polícias Civil e Militar e identificamos o agente. Um procedimento administrativo e criminal foi aberto”, conta Darcy Burlandi, defensora pública. Uma denúncia coletiva com relatos de depredação do patrimônio, roubo, furto, agressão, tortura com choque e até execução sumária foi encaminhada há cerca de um mês, por oito entidades ligadas aos direitos humanos, à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA). Todas referem-se ao período da ocupação policial nas favelas. Os órgãos ainda não se manifestaram. (RM)
Bunker do crime
A ocupação da Vila Cruzeiro foi a primeira investida do governo na estratégia de retomada de favelas da Zona Norte do Rio. Quatro dias depois, as forças de segurança tomaram também o Complexo do Alemão. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Rio de janeiro, a Vila Cruzeiro era uma espécie de “bunker” de traficantes que recebiam ordens de criminosos de presídios e repassavam para outras comunidades. A estimativa era de que cerca de 400 criminosos atuavam na área. A ocupação contou com carros blindados da Marinha, que transportaram os policiais até o alto da favela. Existe a expectativa de que uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) seja instalada no local.
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