terça-feira, 10 de agosto de 2010

O "day after" da Lei da Ficha LimpaPolítica

VALOR ECONÔMICO, 10 de agosto de 2010


É pouco provável que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue antes do 3 de outubro se a Lei da Ficha Limpa vale já a partir desta eleição. O tempo é escasso e os juristas acham que há questões complexas em discussão que não aconselham a aceleração dos trâmites. Se a previsão se confirmar, o que é bastante plausível, uma coisa é certa: o "day after" das eleições será um dia de incertezas e até caótico.

Pode ocorrer de o eleitor ser chamado a votar novamente para governador ou senador, por exemplo. O Distrito Federal é apenas o caso mais flagrante, até porque Joaquim Roriz é favorito na disputa. Se o STF decidir que a lei se aplica desde já, Roriz perderá os direitos políticos. Sua ficha suja é conhecida, o que não tem bastado para o eleitor de Brasília trocar de candidato. O risco é o Supremo ficar contra uma decisão popular.

A decisão do STF sairá depois da eleição ou no início de 2011. Não deve levar dois ou mais anos, como ocorreu no TSE em relação a governadores eleitos em 2006 e retirados do cargo já na parte final do mandato.

Mais surreal é a questão da Câmara dos Deputados. É provável que no dia seguinte à eleição não se conheça a composição exata das bancadas. Na atual legislatura, apenas 32 dos 513 deputados (e mais de 5 mil candidatos) conseguiram alcançar ou superar o chamado quociente eleitoral (total de votos válidos divididos pelo total de cargos eletivos em disputa no Estado).

Em 15 Estados e no Distrito Federal nenhum candidato conseguiu essa proeza. É a partir dessa divisão que se calcula o número de deputados que cada partido terá direito de enviar para o Legislativo. Puxadores de votos como Paulo Maluf (ficha suja, 739.827 votos na última eleição) são fundamentais para eleger candidatos menos votados. Se Delfim Netto não tivesse trocado o PP pelo PMDB, certamente teria sido reeleito com a votação que teve em 2006, "puxado" pelo desempenho de Maluf. No Senado, eleição majoritária, uma eventual decisão tardia também pode alterar a composição das bancadas.

O advogado Torquato Jardim, especialista em assuntos da Justiça Eleitoral, acha que na melhor das hipóteses, depois da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o processo levará pelo menos 15 dias para ser protocolado no Supremo. Ou seja, não há como julgar antes da eleição. E nem seria aconselhável, na opinião do juiz federal no Maranhão Marlon Reis, do comitê nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, entidade que reúne 46 organizações representativas da sociedade civil. Reis acredita que o STF precisa de tempo até para assimilar o impacto dos projetos de iniciativa popular, caso do ficha limpa.

Segundo Jardim, são dois os aspectos básicos: a moral pública e o direito objetivo. "Ninguém critica a lei em função do valor moral que ela tem. Mas o argumento moral é totalmente diferente do argumento jurídico", diz.

A Constituição protege outros valores também morais. Há a presunção de inocência, a presunção de suspensão dos direitos políticos somente por sentença penal transitada em julgado, o princípio constitucional da segurança jurídica, o da anualidade da lei eleitoral e o princípio da legitimidade moral para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa dos candidatos.

"A tutela constitucional não protege somente a moralidade para o exercício do mandato. Ela protege direitos individuais fundamentais, dos quais, segundo essa linha de argumento, não se pode abrir mão", diz o advogado. Em termos práticos: alguém perdeu o mandato por abuso do poder econômico, político ou abuso de midia. A lei atual diz que esse político, além de perder o mandato, fica inelegível por três anos. Passado esse período, ele está limpo perante a lei. Então é aprovada uma nova lei e diz que ele em vez de três ficará inelegível por oito anos - ou seja, tem mais cinco a cumprir.

"O que é feito da segurança jurídica, cadê a retroatividade da lei que prejudica? É outro princípio fundamental", diz o advogado. "São circunstâncias em que você quebra pressupostos constitucionais estabelecidos", diz Jardim, que, é bom que se esclareça, se declara "estupefato" com a decisão dos fichas sujas de concorrer. "Por que eles são candidatos de novo, eles não têm vergonha? Isso tudo será ressuscitado durante a campanha eleitoral".

A grande ousadia intelectual do TSE foi dizer que a lei nova tem efeito retroativo irrestrito, em resposta a uma consulta, um mero processo administrativo.

Na verdade, foram duas as decisões do TSE: na primeira, em resposta a uma consulta do senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) decidiu que a Lei da Ficha Limpa não trata das regras da eleição, portanto, não está submetida ao princípio da anualidade. Na segunda, em resposta a consulta do deputado Ilderley Cordeiro (PPS-AC), diz que as normas eleitorais não são como as normas penais (nas quais se aplicaria o princípio da retroatividade). No julgamento de um caso concreto, a mudança de entendimento pode ocorrer no próprio TSE, onde dois ministros aprovaram as consultas com ressalvas e um terceiro (Marco Aurélio Mello) votou contra.

No Brasil, a Suprema Corte não pode avocar processos a qualquer momento, em qualquer instância, em razão de sua gravidade, como acontece nos EUA. Para apressar uma decisão os partidos teriam que protocolar no Supremo uma ação direta de inconstitucionalidade. Mas nenhum deles está disposto a pagar o preço político de ir contra uma lei aprovada no Congresso com o apoio de 1,6 milhão de eleitores.

O juiz Marlon Reis defende que o Supremo deve decidir "sem pressa, pois nós estamos tratando de um caso que, segundo a Constituição, é uma forma de democracia direta", e de preferência com o colegiado completo. Com a antecipação da aposentadoria do ministro Eros Grau há dez ministros na corte, a votação pode acabar empatada e decidida por um voto de minerva do presidente. "Isso seria péssimo institucionalmente, porque no final preponderaria algo que no Supremo nem sequer obteve maioria", teme Reis.

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