terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Herança da velha RFFSA ainda provoca prejuízos para os cofres públicos

VALOR ECONÔMICO, 1 de fevereiro de 2011


A Rede Ferroviária Federal (RFFSA) foi privatizada há 15 anos, mas deixou uma herança que ainda causa problemas e dá prejuízos. Além de milhares de ações trabalhistas que podem custar até R$ 8 bilhões aos cofres públicos, ela tem ativos que já foram bilionários e viraram sucata. Sejam "novos" ou usados, esses ativos - que desde 2007 passaram ao controle da União, com a extinção definitiva da estatal - hoje valem uma fração de seu preço original.

Lá se vão quase 15 anos desde que os trilhos e trens da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) passaram para as mãos das concessionárias. Essa mudança de rumo estancou os rombos financeiros causados pela estatal que controlava a malha de transporte de cargas e passageiros do país. Mas os problemas da RFFSA prosseguem. A herança atual da Rede ainda carrega milhares de ações trabalhistas e um déficit operacional superior a R$ 13 bilhões, uma história de absurdos que parece não ter fim.

Um capítulo dessa história está guardado dentro de grandes caixotes de madeira, em um galpão em Campinas (SP). Ali estão 48 locomotivas que nunca rodaram um metro sequer sobre os trilhos do país. A aquisição feita em 1974 era uma aposta nos modelos elétricos de locomotivas, uma reação à crise do petróleo. As máquinas zero quilômetro, importadas da França, não chegaram a sair da caixa. Hoje elas valem o quanto pesam. Ou até menos que isso. O quilo do ferro custa em média R$ 0,30. Com sorte, o governo talvez consiga vender por uns R$ 0,20 o quilo.

"O que aconteceu é que os modelos elétricos não são mais usados no país, saíram de linha há muito tempo", diz Geraldo Lourenço, diretor de infraestrutura ferroviária do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). "O que podemos tentar é fazer um leilão internacional. A Índia e alguns países árabes ainda usam esse tipo de locomotiva", comenta.

Sejam novos ou usados, o fato é que grande parte dos ativos que pertenciam à Rede - e que desde 2007 passaram para o controle da União com a extinção definitiva da estatal - já não vale o troco do que custaram aos cofres públicos. Todo esse patrimônio sucateado vai ser leiloado. A tarefa está nas mãos do Dnit, órgão do Ministério dos Transportes que assumiu a gestão de todo o patrimônio não operacional da Rede, legado que não entrou nos contratos de arrendamento com as concessionárias.

No próximo mês, o Dnit deve realizar os primeiros leilões desde que assumiu a função. Só em São Paulo serão leiloados 1,3 mil vagões de carga sucateados. O preço do abandono e da falta de planejamento de 30 anos atrás vai ser incluído na fatura. Se o governo conseguir fechar essa venda por um preço considerado bom - aproximadamente R$ 0,20 o quilo -, vai arrecadar algo em torno de R$ 3,9 milhões. Daria para comprar apenas 63 vagões novos. E só.

Outros milhares de vagões sucateados devem ser licitados em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Ao todo, estima o Dnit, há cerca de cinco mil vagões para serem vendidos como ferro velho. Centenas de locomotivas sucateadas também irão a leilão, além de partes que estão espalhadas em dezenas de almoxarifados pelo país. "Em Minas, na cidade de Cruzeiro, há 231 motores de locomotivas elétricas, todos na caixa, sem uso. Tudo isso vai a leilão", diz Lourenço.

Enquanto vende os bens para o ferro-velho, o governo tenta dar fim ao labirinto de processos trabalhistas que envolvem a estatal. A situação não poderia ser mais complicada. Em 2007, a Advocacia-Geral da União (AGU) assumiu a responsabilidade de dar jeito no imbróglio jurídico. À época, estimava-se que havia 42 mil processos contra a Rede. Mas a situação se revelou muito pior. "Quando conseguimos finalmente reunir as informações, percebemos que, na verdade, se tratavam de 62 mil processos", afirma Mario Guerreiro, diretor do departamento trabalhista da AGU.

O risco estimado de pagamento desses processos somava R$ 8 bilhões, mas, segundo Guerreiro, esse valor certamente está subestimado. Nos últimos quatro anos, a AGU conseguiu reduzir o número de processos para 38 mil ações. O problema é que novas ações são movidas todos os anos. "Não houve paralisação. Recebemos cerca de mil processos novos por ano. Em Minas Gerais, por exemplo, um sindicato que representa cerca de 800 funcionários pede indenização de R$ 1 bilhão", comenta Guerreiro.

Criada em 1957, a RFFSA chegou a ser a maior empresa pública do país, à frente da Petrobras. Antes de passar pelo processo de desestatização, realizado entre 1992 e 1996, a Rede tinha 148 mil funcionários. "A realidade é que era um grande cabide de emprego", diz Geraldo Lourenço, do Dnit.

Em 2007, com a extinção da estatal, o governo assumiu o seu espólio e as dívidas da empresa, ocasião em que o prejuízo acumulado era de R$ 17,6 bilhões. Boa parte do patrimônio aproveitável foi transferido para as concessões, mas o que restou ficou praticamente abandonado. Desde o fechamento da RFFSA, nos anos 90, o setor privado já investiu R$ 22 bilhões.

Numa das visitas que fez ao almoxarifado de Campinas, Geraldo Lourenço conta que, ao entrar no galpão, viu uma curiosa caixa de ferro no chão. Estava lacrada. Abriu a caixa e encontrou centenas de pinos dourados. Mandou checar o que era aquilo. Eram peças banhadas a ouro, usadas em controle das locomotivas francesas que não podiam oxidar. Achou outras duas caixas iguais, repletas dos pinos. Com ajuda da Polícia Militar, o Dnit transferiu as caixas para um cofre que cuida dos pertences da Rede. Tudo está sendo devidamente catalogado e avaliado. A chamada "inventariança", criada para fazer o levantamento dos bens da RFFSA, ainda não concluiu sua análise.

Para Mário Guerreiro, da AGU, ainda há muito trabalho e gastos pela frente. "Difícil dizer quando tudo isso vai terminar. É um trabalho sem prazo."

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