sexta-feira, 26 de novembro de 2010

No ar e na terra

O GLOBO, Míriam Leitão, 26 de novembro de 2010


Da janela do avião, o Rio aparece em toda a sua beleza. Nos últimos dois dias entrei e saí do Rio duas vezes. Na terra, o clima está pesado, emergencial, não se vê a paisagem. O motorista que me levou ao aeroporto ontem errou o caminho porque dirigia mais atento ao que o secretário José Mariano Beltrame dizia no rádio. A passageira ao lado, antes da decolagem, faz uma ligação aflita.

— Já chegou? Graças a Deus. Mas cuidado, saia mais cedo, na hora que você sai é quando eles mais atacam — diz a passageira para alguém querido.

As pessoas amadas passaram os últimos dias no Rio se telefonando o dia inteiro, informando e pedindo localização. Querendo proteção divina e dando graças.

Ana, camareira na TV, mora em frente à Vila Cruzeiro. Sai normalmente de casa faltando quinze minutos para as cinco. Ontem, perdeu a hora.

— Foi tiro à noite inteira, esperei clarear para sair de casa.

O motorista que me busca cedo fala rápido com a mulher, enquanto entro no carro às 5h50m:

— Está tudo bem, fique tranquila. Claro, vou continuar ligando.

A maquiadora divide a atenção entre o meu rosto e a televisão.

— Vi uma cena de um menininho correndo com uma mochila de escola. Chorei. Pensei no meu filho e pensei na mãe dessa criança que pode estar trabalhando como eu e vendo a cena do filho — me diz, se emocionando de novo.

Minha sobrinha, que acaba de chegar de Minas, avisa que está em Ipanema. Quarenta minutos depois, ela não havia chegado à Gávea, e aí sou eu a me preocupar. Outra sobrinha ligou. É jornalista. Avisa que está voltando da Penha onde foi fazer uma reportagem, me informa que está bem, e avisa que se tiver plantão, mandará o filho pequeno ficar na minha casa. Isso foi na quarta-feira. Ontem, o recado da sobrinha jornalista foi mais breve.

— Oi. Estou na Vila Cruzeiro. Estou bem. Não posso falar agora.

Na terça-feira, eu tinha um jantar. Foi só comentar que ouvi o recado costumeiro.

— Como? Você vai sair de casa? Dizem que vai ter confusão aí perto.

Fui. O taxista me recebe perguntando:

— Sabe da última? Tem um caminhão cheio de explosivo em algum lugar.

O jantar era de muitos amigos. Dois colegas subiram no elevador contando que a PUC tinha suspendido as aulas. Achavam meio exagero. Os paulistas chegavam no jantar olhando com cara de consternação para os moradores do Rio.

O motorista de taxi, que eu pego na volta, mal fala comigo. Ouvido grudado no rádio. Quando o noticiário muda de assunto, ele procura outra estação. Quer obsessivamente ouvir as mesmas notícias.

— Onde está havendo problemas? — Ele pergunta à central.

Ontem, no caminho do aeroporto, Beltrame estava sendo entrevistado por Lúcia Hippolito, na CBN. O motorista vibrava com cada resposta dada pelo secretário.

— É isso mesmo. É isso mesmo!

Beltrame, com seu inequívoco sotaque gaúcho, fala que o Rio tem que ir até o fim, que não se pode recuar agora e que o governo do Rio sabe para onde está indo. O taxista aprova. Beltrame elogia a Marinha, que cedeu equipamentos e deu apoio operacional. O taxista aprova.

— Esse cara é bom, olhaí, esse cara é assim. Tem peito — aprova de novo o motorista, e gosta ainda mais quando Beltrame diz que só se discute esse assunto da segurança no Rio nas crises, depois o tema é esquecido.

Um torpedo, no sentido telefônico da palavra, chega ao meu celular avisando que minha sobrinha de Minas está voltando para casa: o workshop na Uerj, motivo que a trouxe ao Rio, está suspenso pelo menos nesta quinta-feira.

Assim se vive estes dias na bela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, jóia da coroa brasileira, porta de entrada e saída do Brasil, nosso cartão-postal. Assunto único, conversa dominante, rotinas subvertidas. Os diálogos podem começar de qualquer ponto, porque o interlocutor sempre sabe do que se fala. Só se fala disso. Boatos se misturam aos fatos e não há como separá-los porque os fatos parecem irreais. A menina de 14 anos em frente ao computador na sua casa leva um tiro no peito e morre. A economia conseguiu oferecer à família dela, mesmo morando numa área pobre da cidade, a possibilidade de ter um computador em casa, mas a segurança não protegeu sua vida.

Ontem, no ápice da tensão, as cenas da fuga de bandidos da Vila Cruzeiro para o mar de favelas que é o Alemão dá ao mesmo tempo medo e esperança. Vistos assim do alto, do helicóptero, eles são o que são: um grupo em desordem. A chance da vitória existe. Ao mesmo tempo, dói ver como alguns são tão jovens.

O Rio tenta se proteger da sequência dos fatos e vive dias de tensão e pânico, mas ninguém está exatamente surpreso. É uma aflição esperada: expulsos de favelas menores, perdendo território e dinheiro, o tráfico permanece encastelado nas grandes favelas, como o Complexo do Alemão e a Rocinha. Eles reagiriam, isso estava escrito nas estrelas.

Há as UPPs e o PAC. As UPPs entraram nas favelas tirando o tráfico de drogas, retomando territórios. O PAC pede licença. São obras de melhoria inclusive nas favelas ocupadas pelo tráfico. No Alemão, por exemplo, os trabalhadores passam entre bancas de cocaína e adolescentes armados. Quem já visitou o Complexo sabe que ele é uma gigantesca cidadela. Nada será fácil lá, como não será na Rocinha. Nada será fácil em toda essa longa tragédia $Rio. Mas era isso ou ficar de braços abertos para o inaceitável.

Visto de perto, o Rio é complexo. Mas só tem uma saída: ter a presença do Estado em todo o seu território. Do contrário será uma bela paisagem para ser vista de longe.

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