ESTADÃO ONLINE, 16 de janeiro de 2011
O universitário Emanoel Pavani Torres, de 30 anos, que estava na casa dos pais, em Teresópolis, na madrugada de terça-feira, registrou todos os instantes da catástrofe que atingiu a cidade desde a hora em que foi acordado, no meio da noite, até quando socorreu o caseiro e conseguiu levá-lo para o Rio. A casa dos pais dele está irreconhecível. Piscina, lago e rio viraram um mar de lama. Após deixar o caseiro, Emanoel voltou à serra com alimentos não perecíveis para ajudar no resgate das vítimas. "Tem muita gente, mas muita gente mesmo precisando de socorro em Teresópolis."
"Acordei com um barulho muito forte de temporal e vento nas janelas. Fui até a sala, vi água no chão e olhei para o teto achando que fosse goteira. A semana anterior tinha sido úmida, de chuva intermitente. Mas, agora, o quadro era diferente: do lado de fora da casa, uma árvore caída represou a água e fez seu nível subir até cerca de um metro na porta de vidro que separa a sala da varanda.
Dei a volta pelos fundos, para tentar sair e ver a situação do jardim na frente da casa. O riacho que passa pelo terreno havia transbordado, a rua estava completamente submersa e a piscina e o lago viraram uma coisa só. Então, percebi que estava ilhado.
Já não tinha como chegar até o caseiro, a casa dele fica mais perto da rua. Ele também não conseguiria vir até a casa maior.
Escalei a chaminé da lareira para subir no telhado e de lá chegar até a caixa d"água, numa tentativa de avaliar na escuridão até onde ia o estrago.
Ouvi um forte barulho, percebi que a casa do caseiro estava desmoronando. Já era uma segunda avalanche de terra. A terceira derrubou uma parede da casa maior e empurrou os móveis na direção da piscina. Tive a impressão de que a construção não resistiria.
Sem celular, apenas com uma bermuda e a carteira, esperei lá em cima até o dia amanhecer para saber que rumo tomar.
O carro e a moto estavam perdidos, cobertos por uma montanha de lama. O galinheiro desapareceu, os marrecos, os patos, o cachorro, nunca mais os vi. O terreno da casa, de 3 mil m2, fica em um vale onde vivia uma comunidade muito carente, dizimada com os deslizamentos. Calculo que 90% daquela população morreu ou está desaparecida. Os sucessivos desmoronamentos traziam não só terra, mas pedras gigantescas, troncos, partes das casas, e corpos. Um deles, de uma criança, foi parar no jardim de casa. A essa altura, meu desespero já tinha virado resignação: achei que ia morrer e aceitei isso.
Mais tranquilo, desci da caixa d"água e caminhei pelos montes de terra até o lugar onde passava a estrada. Gritei para ver se fazia contato com algum vizinho. Alcancei uma casa próxima, onde havia 17 pessoas - senhoras, adolescentes e crianças, a maior parte desesperada. As crianças menos. Pareciam excitadas com a "aventura", sem se darem conta da dimensão da catástrofe. Fiquei um pouco com eles, até conseguir retirá-los dali e encaminhá-los a um condomínio grande que não fora atingido. Montamos ali um posto de atendimento informal aos sobreviventes, que apareciam enlameados, em número cada vez maior, e fornecemos água potável.
A partir daí, como a defesa civil demorou um tempo para chegar, passei o resto da manhã e parte da tarde ajudando no resgate das pessoas. Essa foi a parte mais dolorosa. Apesar de ter feito um curso de primeiros socorros, confesso que agi por instinto, sem pensar, simplesmente fazendo o que conseguia, para não fraquejar.
Encontrei o caseiro enlameado até os cabelos e o levei até o condomínio para que pudesse tomar água e comer alguma coisa.
As vítimas eram transportadas em macas feitas de bambu e cobertor para o campo de futebol da região, que funcionou também como heliponto. O helicóptero da Globo eventualmente levava alguém, mas, como era pequeno, não cabia mais de uma pessoa por vez. Era preciso escolher quem embarcaria, no meio daquele campo de agonizantes. Foi muito ruim. Muitos dos que ficavam morriam na nossas mãos. Uma menina grávida mudou de cor aos poucos, foi amolecendo, e morreu. Outra eu carreguei por quase 1 km, até o local mais próximo onde pudessem atendê-la.
Vi muitos corpos inchados, ou aos pedaços, largados na estrada ou escorados em árvores, crianças pedindo socorro aos prantos. Não pensei que fosse viver para ver algo assim.
Lembrei que precisava me alimentar para poder continuar. Estava completamente sem energia, exausto, com os pés cheios de feridas.
Fui até o condomínio para buscar o caseiro e, como precisávamos tomar antitetânica, pegamos carona com uma picape do Corpo de Bombeiros até o hospital. Dali, caminhamos até a rodoviária, que fica perto, e pegamos um ônibus para o Rio. Passei o dia juntando mantimentos não perecíveis para levar aos sobreviventes. Voltarei amanhã para retomar o resgate."
O universitário Emanoel Pavani Torres, de 30 anos, que estava na casa dos pais, em Teresópolis, na madrugada de terça-feira, registrou todos os instantes da catástrofe que atingiu a cidade desde a hora em que foi acordado, no meio da noite, até quando socorreu o caseiro e conseguiu levá-lo para o Rio. A casa dos pais dele está irreconhecível. Piscina, lago e rio viraram um mar de lama. Após deixar o caseiro, Emanoel voltou à serra com alimentos não perecíveis para ajudar no resgate das vítimas. "Tem muita gente, mas muita gente mesmo precisando de socorro em Teresópolis."
"Acordei com um barulho muito forte de temporal e vento nas janelas. Fui até a sala, vi água no chão e olhei para o teto achando que fosse goteira. A semana anterior tinha sido úmida, de chuva intermitente. Mas, agora, o quadro era diferente: do lado de fora da casa, uma árvore caída represou a água e fez seu nível subir até cerca de um metro na porta de vidro que separa a sala da varanda.
Dei a volta pelos fundos, para tentar sair e ver a situação do jardim na frente da casa. O riacho que passa pelo terreno havia transbordado, a rua estava completamente submersa e a piscina e o lago viraram uma coisa só. Então, percebi que estava ilhado.
Já não tinha como chegar até o caseiro, a casa dele fica mais perto da rua. Ele também não conseguiria vir até a casa maior.
Escalei a chaminé da lareira para subir no telhado e de lá chegar até a caixa d"água, numa tentativa de avaliar na escuridão até onde ia o estrago.
Ouvi um forte barulho, percebi que a casa do caseiro estava desmoronando. Já era uma segunda avalanche de terra. A terceira derrubou uma parede da casa maior e empurrou os móveis na direção da piscina. Tive a impressão de que a construção não resistiria.
Sem celular, apenas com uma bermuda e a carteira, esperei lá em cima até o dia amanhecer para saber que rumo tomar.
O carro e a moto estavam perdidos, cobertos por uma montanha de lama. O galinheiro desapareceu, os marrecos, os patos, o cachorro, nunca mais os vi. O terreno da casa, de 3 mil m2, fica em um vale onde vivia uma comunidade muito carente, dizimada com os deslizamentos. Calculo que 90% daquela população morreu ou está desaparecida. Os sucessivos desmoronamentos traziam não só terra, mas pedras gigantescas, troncos, partes das casas, e corpos. Um deles, de uma criança, foi parar no jardim de casa. A essa altura, meu desespero já tinha virado resignação: achei que ia morrer e aceitei isso.
Mais tranquilo, desci da caixa d"água e caminhei pelos montes de terra até o lugar onde passava a estrada. Gritei para ver se fazia contato com algum vizinho. Alcancei uma casa próxima, onde havia 17 pessoas - senhoras, adolescentes e crianças, a maior parte desesperada. As crianças menos. Pareciam excitadas com a "aventura", sem se darem conta da dimensão da catástrofe. Fiquei um pouco com eles, até conseguir retirá-los dali e encaminhá-los a um condomínio grande que não fora atingido. Montamos ali um posto de atendimento informal aos sobreviventes, que apareciam enlameados, em número cada vez maior, e fornecemos água potável.
A partir daí, como a defesa civil demorou um tempo para chegar, passei o resto da manhã e parte da tarde ajudando no resgate das pessoas. Essa foi a parte mais dolorosa. Apesar de ter feito um curso de primeiros socorros, confesso que agi por instinto, sem pensar, simplesmente fazendo o que conseguia, para não fraquejar.
Encontrei o caseiro enlameado até os cabelos e o levei até o condomínio para que pudesse tomar água e comer alguma coisa.
As vítimas eram transportadas em macas feitas de bambu e cobertor para o campo de futebol da região, que funcionou também como heliponto. O helicóptero da Globo eventualmente levava alguém, mas, como era pequeno, não cabia mais de uma pessoa por vez. Era preciso escolher quem embarcaria, no meio daquele campo de agonizantes. Foi muito ruim. Muitos dos que ficavam morriam na nossas mãos. Uma menina grávida mudou de cor aos poucos, foi amolecendo, e morreu. Outra eu carreguei por quase 1 km, até o local mais próximo onde pudessem atendê-la.
Vi muitos corpos inchados, ou aos pedaços, largados na estrada ou escorados em árvores, crianças pedindo socorro aos prantos. Não pensei que fosse viver para ver algo assim.
Lembrei que precisava me alimentar para poder continuar. Estava completamente sem energia, exausto, com os pés cheios de feridas.
Fui até o condomínio para buscar o caseiro e, como precisávamos tomar antitetânica, pegamos carona com uma picape do Corpo de Bombeiros até o hospital. Dali, caminhamos até a rodoviária, que fica perto, e pegamos um ônibus para o Rio. Passei o dia juntando mantimentos não perecíveis para levar aos sobreviventes. Voltarei amanhã para retomar o resgate."
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