Primeiro, desabou a casa do aposentado Cláudio Pereira Coelho, de 40 anos, arrastada pelos deslizamentos da última quarta-feira. Nas oito horas seguintes, foi seu mundo que veio abaixo. Após todo o tempo em que ficou soterrado com os dois filhos adolescentes, a mulher, e uma sobrinha, só Cláudio sobreviveu. Mas, como tudo no drama de proporções grandiosas que afeta a Região Serrana do Rio — até a noite de ontem, eram 634 mortos —, o destino lhe tirou os familiares com uma dose brutal de crueldade. No dia a dia, o casal Cláudio e Adriana era acostumado a conversar com os filhos à mesa de jantar. Mas o diálogo mais forte dessa família, nascida em Nova Friburgo de um amor fulminante na infância, ocorreu sob os escombros e a lama. “Papai, não me deixa morrer; me salva”, dizia Aleff Cirino Coelho, de 14 anos, que deitou a cabeça sobre o braço esquerdo do pai. “Calma, filho, eu vou gritar socorro; eu vou pedir para tirar você primeiro e depois eu”, disse Cláudio ao filho. No depoimento abaixo, dado ao repórter Antero Gomes, Cláudio conta como parte de sua vida ficou sob os escombros.
Quando ele (Aleff) tinha 10 meses e ainda não sabia andar, eu fui hospitalizado, por causa de um acidente de moto. Quando eu voltei do hospital, ele tinha 2 anos e já sabia andar. Nossa, não esqueço.
Não enterrei ninguém ainda. Eu estava machucado e no abrigo. Os três foram enterrados como indigentes. Não sei nem o cemitério, nem a cova. Minha sobrinha continua soterrada lá embaixo. Ou o rio levou. Dizem que, ali onde eu moro, 50 pessoas morreram. Algumas continuam lá. Os moradores é que estão procurando.
Não consegui avisar ainda minha sogra, nem meu sogro. Nem sei se eles estão vivos. Os dois moram em Conselheiro Paulino. Se estiverem vivos, não sabem que a filha morreu. Como as coisas estão por lá? Não sei de notícias de nada. Você me levaria para avisá-los?
Sinceramente, não sei como reconstruir minha vida. Meu mundo desabou. Nem documentos eu tenho mais. Perdi casa, carro, tudo. Mas isso não é nada. Família, sim, é tudo. Sabe, conheci minha mulher no dia do aniversário de 14 anos dela, numa festa de uma amiga da minha prima. Foi num sábado, lá em Conselheiro Paulino, distrito de Nova Friburgo. Eu não sou de Nova Friburgo, não. Vim aqui para trabalhar há 29 anos. Hoje, tenho 40. Sou de São Fidélis (Norte Fluminense). Quando vi a Adriana, foi amor à primeira vista. A gente namorou um ano, noivou e casou mais um ano depois.
Até as fotos do casamento estão perdidas. Tínhamos um álbum por revelar, mas ele também se foi. Do meu filho, só tenho uma foto de quando ele era pequeno. Não tenho foto recente para me lembrar dele. Agora, minha família é meu pai e minha mãe. Vou morar com eles. Mas meu mundo desabou. Estou sem orientação. Tenho uma aposentadoria e mais nada. Nem com a roupa do corpo eu saí. Quando sai da casa, estava só de cueca. Só tenho agora esta bermuda, esta camisa e este tênis. Este é o meu patrimônio. Por isso, estou evitando sujar a bermuda de lama. Não quero ficar sujo.
Minha mulher, o que dizer? Ela era extraordinária. Ela saía de casa às 6h10m para ir trabalhar e voltava no final da tarde. Dava o dinheiro do mês para eu administrar. Assim, a gente foi construindo essa casa. Pagando aos poucos a parentes que a construíram.
Meus filhos era ótimos. A menina estava fazendo curso técnico em informática. Meu filho queria ser garçom. No entanto, eu dizia para ele: “Ser garçom é bom, mas tem coisa melhor”. Eu queria que ele fizesse um curso este ano de petróleo e gás, que abriu aqui em Nova Friburgo.
Vim para este abrigo (um laboratório em Prainha, invadido por 120 desabrigados), está todo mundo ajudando e eu também. Ontem, eu estava limpando as escadas, mas fiquei muito estressado. Hoje, eu estou lá no almoxarifado. Está muito dolorido, mas tenhp que ajudar. Ainda estou com dor perna. Machuquei o fêmur. À noite, eu fico tendo pesadelos. A todo momento, eu ouço a voz do meu filho pedindo: “Papai, me salva, não deixa eu morrer”.
Teve um momento, debaixo dos escombros, em que eu conversei com Deus. Eu disse: “Deus, me perdoe pelos meus pecados, mas eu quero viver. Eu quero viver. Mas também deixa o meu filho viver. Porque, pelo menos, tem eu e ele para darmos continuidade à vida”. Não sei, mas se não tivesse tanta barreira na estrada (no dia da tragédia), acho que ele tinha chegado ao hospital e estaria vivo. Desabou tudo. Acabou tudo.
Quando desceu a primeira barreira, eu estava na sala com meus dois filhos, de 14 e 16 anos, minha esposa e minha sobrinha, de 12. Eram 2h40m da madrugada. Lembro bem de tudo. Morava no segundo andar de uma casa de três andares no bairro Prainha e ouvi o povo gritando “socorro, socorro”. Fui até a porta da entrada com o meu filho de 14 anos (Aleff Cirino Coelho). O barranco tinha levado a escada de saída. Sou deficiente de uma perna, mas pensei: vou pular da janela em cima da garagem. Não deu tempo. Um segundo barranco derrubou a casa com a gente dentro. Morreu todo mundo.
O corpo da minha sobrinha ainda está desaparecido. Fiquei soterrado por quase oito horas. Como as minhas mãos estavam soltas, ficava tentando tirar a água e a lama do rosto do meu filho. A cabeça dele caiu sobre meu braço esquerdo, estava com sangue na boca e no nariz. Desde que fiquei aleijado, num acidente de moto, ele virou meu melhor amigo. Sempre que eu precisava ir a algum lugar e de alguém para me equilibrar, ele largava tudo. Amigos, brincadeiras... e pedia para me acompanhar.
A primeira a morrer foi minha filha (Franciele). Ela ficou abraçada à minha esposa (Adriana Baloneq Cirino), que caiu com as pernas sobre a minha barriga. Minha sobrinha? Eu não sei onde foi parar. Uns 20 minutos antes de minha mulher morrer, ela disse: “Cláudio, não estou aguentando o peso, eu vou morrer”. Eu disse: “Calma. Onde está a Franciele?” Minha esposa respondeu: “Está aqui abraçada comigo”. Perguntei: “Ela está viva?”. “Não, Cláudio. Ela está morta”. Nesta hora, o meu mundo acabou. E meu filho quase morrendo ali.
Minha esposa estava conversando comigo, mas depois balançou as pernas e morreu. Só aguentou uns 40 minutos. Mas ainda tinha o meu filho, que era tudo para mim. Tudo.
O que eu não consigo esquecer mesmo é dele implorando, sussurrando: “Papai, papai, não me deixa morrer, me salva”. É duro ver um filho morrendo nos seus braços... Quando o socorro chegou, pedi: “Salva meu filho primeiro, estou bem”. Mas eles gritaram que tinham que me tirar primeiro.
Fui para um hospital e, de lá, para um abrigo. Minha mãe disse que tiraram o Aleff com vida, mas estava com o peito todo quebrado e desmaiou. Colocaram ele num carro e o levaram para o hospital. Tinha muita barreira e, quase na chegada, ele morreu.
Quando ele (Aleff) tinha 10 meses e ainda não sabia andar, eu fui hospitalizado, por causa de um acidente de moto. Quando eu voltei do hospital, ele tinha 2 anos e já sabia andar. Nossa, não esqueço.
Não enterrei ninguém ainda. Eu estava machucado e no abrigo. Os três foram enterrados como indigentes. Não sei nem o cemitério, nem a cova. Minha sobrinha continua soterrada lá embaixo. Ou o rio levou. Dizem que, ali onde eu moro, 50 pessoas morreram. Algumas continuam lá. Os moradores é que estão procurando.
Não consegui avisar ainda minha sogra, nem meu sogro. Nem sei se eles estão vivos. Os dois moram em Conselheiro Paulino. Se estiverem vivos, não sabem que a filha morreu. Como as coisas estão por lá? Não sei de notícias de nada. Você me levaria para avisá-los?
Sinceramente, não sei como reconstruir minha vida. Meu mundo desabou. Nem documentos eu tenho mais. Perdi casa, carro, tudo. Mas isso não é nada. Família, sim, é tudo. Sabe, conheci minha mulher no dia do aniversário de 14 anos dela, numa festa de uma amiga da minha prima. Foi num sábado, lá em Conselheiro Paulino, distrito de Nova Friburgo. Eu não sou de Nova Friburgo, não. Vim aqui para trabalhar há 29 anos. Hoje, tenho 40. Sou de São Fidélis (Norte Fluminense). Quando vi a Adriana, foi amor à primeira vista. A gente namorou um ano, noivou e casou mais um ano depois.
Até as fotos do casamento estão perdidas. Tínhamos um álbum por revelar, mas ele também se foi. Do meu filho, só tenho uma foto de quando ele era pequeno. Não tenho foto recente para me lembrar dele. Agora, minha família é meu pai e minha mãe. Vou morar com eles. Mas meu mundo desabou. Estou sem orientação. Tenho uma aposentadoria e mais nada. Nem com a roupa do corpo eu saí. Quando sai da casa, estava só de cueca. Só tenho agora esta bermuda, esta camisa e este tênis. Este é o meu patrimônio. Por isso, estou evitando sujar a bermuda de lama. Não quero ficar sujo.
Minha mulher, o que dizer? Ela era extraordinária. Ela saía de casa às 6h10m para ir trabalhar e voltava no final da tarde. Dava o dinheiro do mês para eu administrar. Assim, a gente foi construindo essa casa. Pagando aos poucos a parentes que a construíram.
Meus filhos era ótimos. A menina estava fazendo curso técnico em informática. Meu filho queria ser garçom. No entanto, eu dizia para ele: “Ser garçom é bom, mas tem coisa melhor”. Eu queria que ele fizesse um curso este ano de petróleo e gás, que abriu aqui em Nova Friburgo.
Vim para este abrigo (um laboratório em Prainha, invadido por 120 desabrigados), está todo mundo ajudando e eu também. Ontem, eu estava limpando as escadas, mas fiquei muito estressado. Hoje, eu estou lá no almoxarifado. Está muito dolorido, mas tenhp que ajudar. Ainda estou com dor perna. Machuquei o fêmur. À noite, eu fico tendo pesadelos. A todo momento, eu ouço a voz do meu filho pedindo: “Papai, me salva, não deixa eu morrer”.
Teve um momento, debaixo dos escombros, em que eu conversei com Deus. Eu disse: “Deus, me perdoe pelos meus pecados, mas eu quero viver. Eu quero viver. Mas também deixa o meu filho viver. Porque, pelo menos, tem eu e ele para darmos continuidade à vida”. Não sei, mas se não tivesse tanta barreira na estrada (no dia da tragédia), acho que ele tinha chegado ao hospital e estaria vivo. Desabou tudo. Acabou tudo.
Quando desceu a primeira barreira, eu estava na sala com meus dois filhos, de 14 e 16 anos, minha esposa e minha sobrinha, de 12. Eram 2h40m da madrugada. Lembro bem de tudo. Morava no segundo andar de uma casa de três andares no bairro Prainha e ouvi o povo gritando “socorro, socorro”. Fui até a porta da entrada com o meu filho de 14 anos (Aleff Cirino Coelho). O barranco tinha levado a escada de saída. Sou deficiente de uma perna, mas pensei: vou pular da janela em cima da garagem. Não deu tempo. Um segundo barranco derrubou a casa com a gente dentro. Morreu todo mundo.
O corpo da minha sobrinha ainda está desaparecido. Fiquei soterrado por quase oito horas. Como as minhas mãos estavam soltas, ficava tentando tirar a água e a lama do rosto do meu filho. A cabeça dele caiu sobre meu braço esquerdo, estava com sangue na boca e no nariz. Desde que fiquei aleijado, num acidente de moto, ele virou meu melhor amigo. Sempre que eu precisava ir a algum lugar e de alguém para me equilibrar, ele largava tudo. Amigos, brincadeiras... e pedia para me acompanhar.
A primeira a morrer foi minha filha (Franciele). Ela ficou abraçada à minha esposa (Adriana Baloneq Cirino), que caiu com as pernas sobre a minha barriga. Minha sobrinha? Eu não sei onde foi parar. Uns 20 minutos antes de minha mulher morrer, ela disse: “Cláudio, não estou aguentando o peso, eu vou morrer”. Eu disse: “Calma. Onde está a Franciele?” Minha esposa respondeu: “Está aqui abraçada comigo”. Perguntei: “Ela está viva?”. “Não, Cláudio. Ela está morta”. Nesta hora, o meu mundo acabou. E meu filho quase morrendo ali.
Minha esposa estava conversando comigo, mas depois balançou as pernas e morreu. Só aguentou uns 40 minutos. Mas ainda tinha o meu filho, que era tudo para mim. Tudo.
O que eu não consigo esquecer mesmo é dele implorando, sussurrando: “Papai, papai, não me deixa morrer, me salva”. É duro ver um filho morrendo nos seus braços... Quando o socorro chegou, pedi: “Salva meu filho primeiro, estou bem”. Mas eles gritaram que tinham que me tirar primeiro.
Fui para um hospital e, de lá, para um abrigo. Minha mãe disse que tiraram o Aleff com vida, mas estava com o peito todo quebrado e desmaiou. Colocaram ele num carro e o levaram para o hospital. Tinha muita barreira e, quase na chegada, ele morreu.
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