sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Pior que as "doações ocultas"

VALOR ECONÔMICO, Renata Rizzi, 13 de agosto de 2010

As doações ocultas são apenas uma migalha do que realmente há de perverso em nossa estrutura de financiamento de campanhas.


Assistimos, há alguns meses, à movimentação dos partidos contra a resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pretende impedir as chamadas "doações ocultas" no futuro (feitas ao partido mas "carimbadas" pelo doador com o nome de determinado candidato). A reação por parte dos partidos era previsível - tão natural quanto a união de empresas que competem em um dado setor para se proteger de mudanças regulatórias que afetem negativamente seus interesses comuns. Em seu relatório de prestação de contas de 2008, o DEM declara uma receita anual de R$ 50,8 milhões, sendo 62,4% desse total relativos a doações de pessoas jurídicas. O PSDB informa ter obtido R$ 62,3 milhões, dos quais 56,0% correspondem a pessoas jurídicas. E o PT registra ter recebido R$ 93,1 milhões, sendo 64,8% deles doados por pessoas jurídicas. Os números (e esses aí nem incluem caixas dois) deixam claro o peso das doações de empresas nas contas das três agremiações. Daí a insistência dos diretórios nacionais em manter as regras como estão.

Grande parte do dinheiro recebido pelos partidos é repassado aos candidatos. Do total de doações corporativas, a fração destinada às rubricas "transferências a candidatos" e "transferências a comitês" em 2008 foi de 49% para o PSDB, 68% para o PT e 82,6% para o DEM (esses números são subestimados devido à possibilidade de o dinheiro seguir o percurso empresa, diretório nacional, direção estadual, candidato).

Por outro lado, as contribuições de pessoas jurídicas a partidos em 2007 (ano não eleitoral) foram ínfimas quando comparadas às de 2008 (o PT arrecadou

R$ 8,7 milhões, o PSDB menos de R$ 3 milhões e o DEM declara não ter obtido doações de empresas). Parece razoável concluir que boa parte do dinheiro que os partidos recebem de empresas tem como destino almejado os candidatos. Ainda assim, não há como quantificar as doações ocultas formalmente. A informação que falta diz respeito à alocação desses recursos: é uma decisão do partido ou dos doadores?

Dirigentes partidários alegam que a prática das doações ocultas resguarda as empresas da associação de seus nomes aos de candidatos específicos. De fato, feita a triangulação com os partidos, o diretório nacional (e não o nome da empresa) é que aparece no relatório de prestação de contas dos candidatos. A análise dos relatórios de partidos e candidatos revela, no entanto, que grande parte das empresas que contribuem para partidos doa também para candidatos específicos. Ora, deve então haver um receio "localizado" com relação a determinados candidatos. Ou, ainda, o desejo de doar valores elevados (bem acima da média observada) para alguns candidatos sem se destacar na prestação de contas. Seja como for, o TSE acerta em coibir as doações ocultas. A rastreabilidade é condição necessária para que se possa provar culpa em casos de corrupção e favorecimento.

A noção de vinculação de contribuições de campanha ao recebimento de favores políticos (referentes a licitações, licenças ambientais, regulação setorial, processos antitruste, financiamentos etc) é intuitiva e bastante disseminada no Brasil. Na literatura acadêmica de economia política, há uma corrente que trata as doações de campanha por empresas como investimentos contingentes, cujo retorno consiste em favores políticos e é condicionado à vitória do candidato. Se o político ganha, as empresas que financiaram sua campanha são recompensadas com favores políticos durante o mandato. Caso contrário, perdem seu dinheiro. Há algumas implicações diretas dessa teoria que podem ser testadas. Ela prevê, por exemplo, que as maiores doadoras serão as empresas com expectativas de favores mais elevadas. E que os candidatos que mais receberão contribuições serão aqueles com melhores chances de vencer. E é precisamente isso que se vê nos dados brasileiros.

Só quem tem reais chances de ganhar e/ou concorre por partidos com forte presença no Congresso é contemplado. Além disso, as doações são extremamente concentradas em termos setoriais, com absoluta predominância do ramo da construção civil, do setor financeiro e da indústria pesada.

Um estudo do professor David Samuels (Universidade de Minnesota) atesta que mais de 90% das contribuições para campanhas presidenciais no Brasil vêm de pessoas jurídicas, sendo que 75% desse dinheiro são doados por participantes dos três setores mencionados (com base em dados do TSE de 1998).

Em termos de doações a partidos, os dados de 2008 mostram que, do total de contribuições corporativas aos diretórios nacionais, a fração correspondente ao setor da construção civil foi de 52,5%, 54,2% e 68,8% para DEM, PT e PSDB, respectivamente (enquanto a participação da indústria no PIB do país não chega a 6%). No mesmo ano, o governo federal gastou quase R$ 3 bilhões na construção de rodovias e ferrovias, tendo contratado 211 firmas para a execução das obras. As quinze empresas contratadas que mais receberam embolsaram, juntas, mais de um R$ 1,5 bilhão. Treze dessas quinze são expressivas doadoras de campanha (segundo dados oficiais).

Cruzando informações do Portal da Transparência e do TSE, constata-se que a maioria das empresas que contribuem para partidos e campanhas presidenciais constam também como pessoas jurídicas favorecidas por gastos diretos do governo federal. As empresas que mais doam no Brasil são aquelas interessadas em obter e/ou manter contratos com o poder público (o tradicional "pay to play"). A maioria delas doa, simultaneamente, para todos os partidos fortes, de modo que seu retorno deixa de ser contingente.

Cabe notar que essa prática não implica, necessariamente, em que essas empresas sejam corruptas e desonestas em sua totalidade. Muitas vezes, diante do assédio intimidador dos políticos, a colaboração com as campanhas se torna uma questão de sobrevivência em ambiente pouco competitivo, prejudicado por barreiras de entrada políticas informais. Nos Estados Unidos, "public contractors" não podem fazer contribuições. Aqui isso é legal... As doações ocultas são apenas uma migalha do que realmente há de perverso em nossa estrutura de financiamento de campanhas. Esse deve ser o foco do nosso debate.

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