O GLOBO, Elio Gaspari, 23 de junho de 2010
Durante sua sabatina na "Folha de S.Paulo", José Serra voltou a enunciar sua crítica à política econômica do governo Lula (inclusive naquilo que ela tem de continuação do mandarinato tucano, no qual foi ministro): "O Brasil tem três ou quatro recordes de que eu me envergonho. As altas taxas de juros e impostos, a ‘lanterninha’ nos investimentos governamentais e a maior hipervalorização da moeda no mundo. Tem um certo arranjo aí que não funciona, e que eu me proponho a consertar."
Enunciado desse jeito, move poucos votos, mas significa o seguinte: com a taxa de juros a 10,25% ao ano, o Brasil continua a ser o país do mundo onde mais se ganha dinheiro sem precisar trabalhar, emprestando-o ao governo. Esse mesmo país tem uma das cargas tributárias mais altas do mundo (35% do PIB, pouco abaixo do patamar de 36,45% deixado pelo tucanato em 2003).
Em português de campanha: o Brasil é um dos países onde mais se trabalha para sustentar o governo que, por sua vez, melhor remunera seus gordos credores. De uma lista de 135 países, o Estado brasileiro, que tanto arrecada, disputa com o Turcomenistão a menor taxa de investimento do mundo.
Finalmente, o real sobrevalorizado barateia as compras em Miami, mas dificulta as exportações. Serra repetiu que o Brasil exporta celulose e importa papel. A taxa de investimento global da economia tem melhorado, mas ainda está abaixo da russa, indiana ou chinesa. "Tem um certo arranjo aí que não funciona."
O candidato do PSDB já disse que essa não é uma divergência entre governo e oposição, mas questão de Estado. Nem na Suíça a linha divisória de uma campanha pode passar por temas tão arcanos, mas, de fato, o arranjo não funciona. Os conselheiros do ex-ministro Antonio Palocci sabem disso, Lula acha que esse problema pode ficar para depois, até porque o curto-circuito só ocorrerá se alguém encostar os fios desencapados e nem na crise de 2008, a da "marolinha", isso aconteceu.
Um dia esse arranjo para de funcionar, por conta de fatores externos ou mesmo internos. Nos anos 70, quando o Brasil festejava o milagre econômico que acarpetou o asfalto natalino da Rua Augusta e deu a Lula o seu primeiro carro, pouca gente prestava atenção em números estranhos. Entre 1970 e 1973, a produção de bens de consumo duráveis, como geladeiras e aparelhos de TV a cores, praticamente triplicara.
Já a produção de bens intermediários, como parafusos, lingotes e mercadorias capazes de atrair novas levas de trabalhadores, crescera apenas 45%. E daí, se dá para empurrar com a barriga? Era o prenúncio de uma pressão inflacionária que, associada a duas crises do petróleo, destruiriam a ditadura e infelicitariam a primeira década da redemocratização.
Nosso Guia já avacalhou um Congresso que recebeu avacalhado, entronizou as centrais sindicais como um poder paralelo e, finalmente, vem dando um toque carnavalesco à sua sucessão.
Num clima de festa, preocupações como as de Serra merecem pouca atenção. Afinal, pode-se empurrar o arranjo com a barriga. Uma coisa é deixar o debate para depois, sinal de astúcia política ou oportunismo eleitoral. Outra é achar que esse "certo arranjo" funciona.
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