quinta-feira, 15 de abril de 2010

Presidente do STF critica deboche à Justiça Eleitoral

ESTADÃO ONLINE, 15 de abril de 2010

A nove dias de deixar a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes faz uma análise dos dois anos de seu mandato


A nove dias de deixar a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes faz uma análise dos dois anos de seu mandato: “Estou como na canção de Piaf, je ne regrette rien, não me arrependo de nada”. Foram muitos os episódios polêmicos, as discussões públicas em que se envolveu e os julgamentos controversos que presidiu. Mesmo sendo alvo de críticas, inclusive de um pedido de impeachment, diz que ajudou o governo Lula a “se aproximar mais de um modelo de estado constitucional”, mas lamenta não ter interferido para manter no Brasil os dois boxeadores cubanos - Erislandy Lara e Guillermo Rigondeaux - que abandonaram a delegação do país durante os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro em 2007 e foram deportados pelo governo Lula.

Aos que reclamam que ele falou demais, Mendes afirma que falou o necessário. Questionado se está havendo campanha antecipada, o presidente do STF foi duro e fez uma crítica indireta a Lula, que reclamou das duas multas que levou da Justiça Eleitoral. "Diante de uma decisão da justiça eleitoral impondo uma sanção a certa autoridade, esta autoridade não pode fazer brincadeira, deboche. Essa autoridade, a despeito de sua eventual contrariedade com a decisão, tem o dever de lealdade constitucional."


O sr. falou demais na presidência?

Acho que falei o necessário. Ninguém discorda que o juiz deve falar nos autos, mas por se tratar de alguém com responsabilidade institucional de presidente do STF, do CNJ e da chefia do próprio Judiciário, existem a responsabilidades para além do que está sendo julgado.

É certo dizer que "nunca antes na história deste país" um presidente do STF falou tanto sobre tantos temas?
Não disponho de nenhum elemento de aferição. Depois vocês fazem as medidas pelo Google. O fato é que o papel do tribunal também mudou muito nos últimos anos. A reforma do Judiciário e o CNJ exigem uma postura diferenciada do presidente do STF como líder que deve ser do Judiciário. Se ouvirem o presidente Michel Temer e o presidente José Sarney, vocês não ouvirão dizer que houve exorbitância. E o próprio presidente Lula sabe do diálogo elevado que mantivemos nesse período.

Há antecipação de campanha?
Não vou falar sobre isso. Eu disse que, diante de uma decisão da Justiça Eleitoral impondo uma sanção a certa autoridade, esta autoridade não pode fazer brincadeira, deboche. Essa autoridade, a despeito de sua eventual contrariedade com a decisão, tem o dever de lealdade constitucional.

O que mais o surpreendeu ou o decepcionou?
Eu imaginava que talvez o Poder Judiciário fosse mais bem aparelhado. Em algumas unidades da Federação, o Judiciário tem uma estrutura bastante precária. Encontramos excesso de servidores à disposição dos tribunais e falta de servidores nas instâncias. Creio que todas as iniciativas contribuíram para mudar ou para dar início a um processo de mudança.

O Judiciário precisa de mais recursos ou de mais vontade para trabalhar?
Em alguns locais, de mais recursos. Não priorizamos o aumento de vagas nos tribunais, nem aumento de servidores no plano federal como também não avançamos na área de construções de novos prédios. Ao contrário, até impedimos a abertura de novas construções, megaprojetos de infraestrutura. Creio que temos dados que vão permitir a análise necessária da devida alocação de recursos, onde estão os estrangulamentos e o que é necessário fazer.

Há resistência ainda ao Conselho Nacional de Justiça?
Aqui ou acolá encontramos uma manifestação de resistência. Mas acredito que a maioria descobriu que o conselho não é inimigo do juiz, não é inimigo da magistratura. É, na verdade, um grande parceiro. Procuramos, inclusive, em toda gestão destacar que a função fundamental do CNJ é de coordenação dos trabalhos, de racionalização e de planejamento das atividades judiciais. Logo não é atividade de repressão e de caráter disciplinar.

O STF deixou de ser reativo para ter papel mais atuante?
O STF, enquanto órgão da cúpula do Judiciário, tem diferentes missões. Tem a missão judicial, mas também a político-institucional, que é importante para a conformação do Judiciário como Poder. Nessa função política ele tem de ter papel proativo.

O sr. foi apontado como líder da oposição no STF. Mas já disse que sua gestão foi boa para o governo Lula. Por quê?
Eu tenho a impressão de que o STF, nestes dois anos, contribuiu decisivamente para a consolidação do Estado de Direito. E muitas vezes acho que ajudou o governo a se aproximar mais de um modelo de Estado constitucional.

Que exemplos daria disso?
As ações abusivas que víamos na conduta de alguns segmentos da Polícia Federal. Gostem ou não, foi o STF que colocou essas ações nos trilhos. A questão das invasões de terra. Foram as advertências do STF, inclusive as minhas falas de que não houvesse subsídio estatal para essas entidades, que chamaram a atenção para a responsabilidade do Ministério Público e do governo para esse assunto. Questões ligadas à demarcação de terras indígenas: foi o STF que talvez tenha reorientado o governo nesse tipo de política, evitando redemarcação, incentivo a invasões, superdimensionamento das áreas demarcadas. Lamento o Judiciário não ter ajudado em uma coisa: a manter os cubanos no Brasil.

Mas não houve decisões do STF que avançaram sobre o Legislativo?
Ao STF cabe dar a última palavra sobre direitos fundamentais. E muitas vezes nós vemos que o tribunal arrosta desafios que só ele consegue enfrentar, como declarar a inconstitucionalidade da lei dos crimes hediondos num momento de grande criminalidade. Ou libertar alguém, que, para o juízo comum, é responsável por todos os crimes e mais pela derrubada das duas torres do World Trade Center. O tribunal tem a missão de proteção das minorias. As minorias sofrem derrotas acachapantes no Congresso com ofensa à Constituição e só resta a elas virem ao STF. Nesse perfil, o tribunal é um órgão contramajoritário.

Se o STF vigia quem governa, quem fiscaliza o STF?
Este é um controle multiplamente complexo. Ele é exercido pelo Congresso quando confirma ou não os nomes dos indicados para o Supremo, pelo poder político do presidente da República quando indica um nome para o STF, pela comunidade que discute as decisões do STF, pela comunidade especializada. Agora, o tribunal não está numa redoma de vidro revelando o Direito. O tribunal está fazendo construções até mesmo se permitindo um certo experimentalismo institucional.

No Judiciário exige-se prova para condenar alguém. Mas integrantes do governo foram demitidos sem nunca ter aparecido o grampo contra o sr. Por quê?
Aqui há uma diferença que precisa ser vista. Muitas vezes as pessoas são vítimas de um complô político e por isso perdem o cargo. É bastante elementar. A responsabilidade nesses casos é política. Quando um ministro não responde satisfatoriamente por uma área, ele pode ou deve ser exonerado. Outra coisa é condenar a pessoa num processo judicial. No caso específico, tínhamos um modelo em que se provou que 80 servidores da Abin se envolveram na chamada Operação Satiagraha, que havia um modelo de bicefalia no comando da Polícia Federal. Não estamos a falar de alguém que foi escolhido como bode expiatório.

E as provas do grampo?
Quanto às provas, não cabe a mim apresentá-las. O que disse é que havia uma conversa mantida com o senador Demóstenes Torres, que o diálogo existira tal como transcrito e apresentado pela revista (Veja). E depois as investigações provaram que havia várias conversas que não constavam da investigação e que estavam com o delegado (Protógenes Queiroz). A heterodoxia do procedimento está provada cabalmente. A participação de quase uma centena de agentes da Abin fala por si só.

Por que acha que foi grampeado?
O que observamos nestes anos de ação policial e política? Vimos cada vez mais um protagonismo muito forte da polícia, muitas vezes em combinação com o Ministério Público e com determinados juízes. Na assim chamada Operação Navalha, tão logo dei os primeiros habeas corpus, começaram os ataques. Ao ponto de divulgarem o nome de um Gilmar Mendes como se eu fosse o investigado. Era esse o tipo de método que se tinha desenvolvido. Isso é método democrático? Ou é método de amedrontamento do Poder Judiciário? Qual era o projeto que estava subjacente a essa orientação? Perguntem isso aos ministros da Justiça e chefes da Polícia Federal.

Como explica a decisão no caso Francenildo, quando o tribunal rejeitou a denúncia contra Palocci?
O tribunal recebeu a denúncia em relação a quem entendeu que tinha responsabilidade penal. De novo não estamos falando de responsabilidade política. O voto está aí com todas as discussões que foram travadas.

A súmula das algemas deu certo?
Deu. Aqui ou acolá chegam reclamações, mas o seu desiderato político foi totalmente alcançado. Não vimos mais aquele quadro de abuso televisado que se repetia semanalmente Brasil afora.

Diz-se muito que a súmula deu certo para o colarinho branco e não deu certo para a criminalidade comum.
O importante é que há a possibilidade de responsabilização e havendo denúncias poderá haver o devido enquadramento legal. No geral a súmula atendeu a seus objetivos e, sem dúvida, temos de insistir no aprimoramento. Mas isso depende de outros fatores, mau funcionamento da defesa, insuficiência da assistência judiciária para coibir os abusos quanto à população mais pobre.

O sr. já disse que deve deixar a corte em dois anos. Pensa em seguir a carreira política?
Eu agora vou cuidar de voltar para a bancada. Vou contribuir para os debates doutrinários em matéria de jurisdição constitucional. Vou prosseguir atuando, tanto quanto possível, no debate acadêmico sobre reforma do Judiciário, direitos humanos.

E carreira política?
Cada coisa no seu tempo.

O sr. se arrepende algo?
Estou como na canção de Piaf, Je Ne Regrette Rien: não me arrependo de nada. Estou em paz comigo mesmo, satisfeitíssimo de tudo o que fizemos e acredito que avançamos muito em termos de administração judiciária e de fortalecimento das instituições. O Judiciário sai mais forte hoje do que antes da minha gestão e não ao contrário.

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