VALOR ECONÔMICO, Vitor Marchetti, 6 de agosto de 2010
Fosse o Judiciário mais célere não teríamos boa parte dos problemas que justificaram o movimento pela Ficha Limpa
Fosse o Judiciário mais célere não teríamos boa parte dos problemas que justificaram o movimento pela Ficha Limpa
A aprovação da Lei Complementar 135 - a Lei da Ficha Limpa - foi celebrada como um largo passo em direção a uma melhor representação política e, em decorrência, uma melhor democracia. Minha intenção aqui é levantar alguns questionamentos que entendo serem tão importantes quanto o Ficha Limpa para a saúde da democracia brasileira, mas que podem estar menos evidentes neste momento de euforia pela sua aprovação.
A meu ver estamos diante de dois problemas que se complementam. O primeiro deles é que, tivéssemos um sistema processual mais racional que permitisse um Judiciário mais célere, não teríamos boa parte dos problemas que justificaram o movimento pela Ficha Limpa. Afinal, a lei de inelegibilidades já previa a vedação de candidaturas de condenados com sentença transitada em julgado.
Quantos deputados federais, por exemplo, que hoje são classificados como "fichas sujas", não teriam sido barrados em suas candidaturas se os processos que correm há décadas contra alguns já não tivessem sido julgados em definitivo?
A celeridade na Justiça Eleitoral não é diferente. Há dois momentos muito importantes para a competição política que passam por suas decisões: registro de candidaturas e litígios de campanhas. É frequente a situação em que um determinado candidato recebe uma sentença do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) - última instância da Justiça Eleitoral - muito tempo após a situação motivadora da ação. Tanto tempo depois que pode alcançar o antigo candidato em pleno exercício de mandato ou, por vezes, até próximo do seu fim. Os recentes casos envolvendo três governadores são emblemáticos a esse respeito.
A segunda questão, que entendo ser a origem da primeira, é o sincretismo entre o Poder Judiciário e a Justiça Eleitoral. Tomamos como natural que, ao mencionar a Justiça Eleitoral, estejamos falando de uma instância judicial. Quando comparamos, porém, os diferentes modelos de organização e administração da competição político-partidária dos diferentes países, percebemos que essa combinação não é assim tão óbvia.
A literatura comprada da ciência política sobre o assunto é recente e ainda motivada por questões particulares em cada país. Nos EUA, por exemplo, o debate sobre governança eleitoral ("electoral governance") surgiu pela ausência de instituições consolidadas nacionalmente, o que se mostrou uma deficiência do modelo nas eleições presidenciais de 2000. No México e na Costa Rica, o esforço tem sido o de consolidar uma governança eleitoral independente e capaz de produzir legitimidade aos resultados eleitorais. Os países do Leste Europeu ainda caminham na mesma direção.
No Brasil, a consolidação institucional e a garantia de independência não são, definitivamente, problemas a serem tratados. O debate por aqui deve ser de outra natureza. Desde 1932, data da sua formação, adotamos um modelo judicializado de administração das eleições. É fato que esse modelo mostrou-se eficaz ao garantir a verdade eleitoral em momentos bastante conturbados de nossa história política, e que foi com esse modelo que avançamos na informatização de nosso sistema. Quero destacar, entretanto, que uma das consequências desse sincretismo é que não temos uma Justiça Eleitoral com um corpo de julgadores exclusivos e permanentes. Dito com outras palavras, os juízes e ministros que assumem os principais postos em todas as instâncias da Justiça Eleitoral não atuam exclusivamente em questões eleitorais e, em termos comparativos, passam pouco tempo nessas funções.
Outra característica desse modelo judicializado é a aproximação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) - última instância da justiça eleitoral - com o Supremo Tribunal Federal (STF) - o último intérprete do texto constitucional. A relação é tão estreita que não vejo problema em afirmar que o TSE se transformou em uma corte do STF para questões eleitorais. Em um país que parece se mobilizar para o enxugamento das atividades do STF, garantindo mais força e monopólio para a interpretação do texto constitucional, lançá-lo constantemente em controvérsias eleitorais é jogá-lo em uma zona de conflito pouco saudável para sua preservação institucional. Além do mais, se a última palavra que organiza o jogo competitivo pode avançar sobre as normas constitucionais - que são as que devem oferecer a maior estabilidade normativa - a certeza e confiança no cenário futuro ficam comprometidas.
Ou o TSE é uma corte com poderes mais amplos do que o de administrar a competição político-partidária - e o debate precisa ser feito em torno das (des)vantagens desse modelo institucional - ou está agindo para além de suas prerrogativas.
A Ficha Limpa é um momento muito oportuno para esse debate, afinal evidencia os dois problemas que levantei aqui. Primeiro porque contribuirá para ampliar o volume de recursos na Justiça Eleitoral e o risco de intensificar a situação de eleições sub judice não pode ser desconsiderado. E, segundo, pela decisão do TSE que - interpretando o texto constitucional - decidiu que a norma não entra em conflito com o princípio da anualidade (artigo 16 da Constituição Federal) e que alcançará os casos anteriores à aprovação da lei - não sendo limitada pelo princípio da irretroatividade (artigo 5º, inciso XL da Constituição).
Ainda que tenhamos uma história de sucesso institucional quando se trata de Justiça Eleitoral no Brasil, não podemos simplesmente ignorar algumas importantes implicações de sua atuação tanto para a construção de cenário competitivo estável como para a própria preservação das instâncias judiciais que acabam envolvidas nas disputas partidário-eleitorais.
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